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Sumário da água

Blog da REBOB

A participação feminina no CBH Macaé e das Ostras: conquista, realidade e resistência

Maria Inês Paes Ferreira

Virgínia Villas Boas Sá Rego



Fruto do contexto de redemocratização após 20 anos de ditadura militar, a Constituição Federal de 1988 consagrou os princípios da gestão pública democrática e instituiu instrumentos de democracia participativa. Juntamente com os tradicionais instrumentos da tão criticada democracia representativa, os conselhos de políticas públicas (educação, saúde, meio ambiente etc.) são definidos pelo texto constitucional como órgãos responsáveis pela construção coletiva dessas mesmas políticas, nas diferentes esferas de poder (municipal, estadual e federal), baseados na participação de representantes dos diferentes setores da sociedade (poder público, sociedade civil, empresas) em defesa de seus respectivos interesses.


Em sintonia com os princípios constitucionais, a Lei 9433/97, a “Lei das Águas” instituiu os Comitês de Bacia Hidrográfica (CBH) como órgãos consultivos, deliberativos e normativos encarregados da gestão dos recursos hídricos no território de sua abrangência. Após 25 anos de sua promulgação, um dos aspectos de destaque ao observar-se a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, que está espelhado nas políticas estaduais, é a menor representatividade da mulher nos CBHs, levando consequentemente à necessidade de ampliar essa participação. A questão água e gênero representa um desafio não só no Brasil, mas também na América Latina, África e Ásia (TINOCO et al, 2022; COLES; WALLACE, 2005; ZWARTEVEEN; MEINZEN-DICK, 2001), apesar do reconhecimento do papel fundamental da participação feminina na gestão das águas, principalmente em um contexto de mudanças climáticas (SULTANA, 2017).


As diferenças e desigualdades entre gêneros presentes na sociedade mais ampla também aparecem na gestão dos recursos hídricos e determinam as formas de envolvimento e participação dos indivíduos nos órgãos de gestão. A maior presença masculina pode ser observada na composição do Conselho Nacional dos Recursos Hídricos (72%) e nos Encontros Nacionais de CBHs, em que fica nítida a predominância de homens brancos, de elevado nível de instrução e poder aquisitivo, bem diferente da realidade da composição da população brasileira. Vale observar também a pequena presença de jovens, mas essa é uma questão que foge ao escopo deste artigo.


A luta pela garantia de maior participação e representatividade feminina nos espaços de poder e de tomada de decisões – em escalas global, nacional, regional e local - é uma das principais bandeiras do movimento feminista, desde meados do século XIX, e de todos aqueles engajados no fortalecimento da cidadania e da democracia. O caso do CBH Macaé e das Ostras (RJ) é um bom exemplo de como a representação feminina é essencial para garantir a efetividade da gestão participativa e integrada dos recursos hídricos.


O CBH Macaé e das Ostras é responsável pela gestão das águas na Região Hidrográfica (RH) VIII do estado do Rio de Janeiro (cujo território está dividido em 9 RH para fins de cobrança e gestão). Foi criado em 2003, após intensa mobilização comunitária de representantes da sociedade civil e de usuários da água preocupados com a rápida degradação das condições ambientais da bacia hidrográfica. O Comitê é formado por 27 membros (9 representantes da sociedade civil, 9 do Poder Público e 9 dos usuários da água); os quais representam interesses sociais, econômicos e culturais diversificados em decorrência das próprias características da RH: o alto curso é uma região de turismo, prática de esportes nos rios, agricultura familiar, sítios de veraneio e de conservação da biodiversidade; a parte baixa, apresenta centros urbanos e a indústria ligada ao petróleo e gás, envolvendo interesses do setor energético transnacional. O CBH Macaé vem se destacando por valorizar a participação cidadã e buscar amplo envolvimento comunitário; prioriza o desenvolvimento de ações, projetos e ferramentas para promover a Educação Ambiental voltada para a gestão dos recursos hídricos, além da comunicação no sentido de divulgar seus trabalhos, diante do desconhecimento da existência desse órgão por boa parte da sociedade, e da mobilização para ampliar a participação social. Essas ações são tão fundamentais que o Comitê considera que têm importância semelhante à de outros instrumentos de gestão definidos pela legislação. Talvez essa prioridade seja decorrente da presença de mulheres e professoras na coordenação da Câmara Técnica de Educação Ambiental, Comunicação e Mobilização (CTEACOM) e na Câmara Técnica de Instrumentos de Gestão (CTIG), que trabalham de forma integrada desde 2010 e cujas atuações sempre priorizaram a busca de caminhos para sensibilizar e ampliar a mobilização e a participação comunitária.


Os CBHs são exemplos da busca de novas práticas de gestão: a chamada governança, com base na participação democrática dos seus membros. Ou seja, seu funcionamento depende essencialmente do desenvolvimento e do fortalecimento da cidadania ativa. A partir de pesquisa realizada nos conselhos de Áreas de Proteção Ambiental (APA) situadas na Bacia Hidrográfica do Rio Macaé (APA do Sana e APA Macé de Cima), constatou-se que, dependendo principalmente, da atuação dos representantes da sociedade civil, os órgãos de governança em geral (não só os CBHs) podem constituir-se em importantes espaços decisórios em prol dos interesses coletivos ou podem tornar-se simples espaços de legitimação de políticas públicas verticais, defensoras dos interesses políticos e econômicos dominantes (REGO, 2010).


Na avaliação do processo de implementação da gestão integrada dos recursos hídricos a partir dos CBHs estaduais, ao considerar a inclusividade e a efetividade da participação, baseado em pesquisa quantitativa, Matos et al. constataram que há uma baixa representatividade das mulheres, que correspondem a 31% (MATOS et al., 2020) dos membros dos CBHs estaduais; baixo percentual, sobretudo, se comparado ao peso da mulher na composição da população brasileira (51,8%, segundo a PNAD-IBGE, 2019). No entanto, a autora constatou que há grande disparidade de representação feminina nos comitês. Apesar de, surpreendentemente, a Região Sudeste possuir a menor média de participação feminina nos comitês estaduais de bacia hidrográficas (29%), o Rio de Janeiro foi o estado que apresentou melhores indicadores (39%).


Segundo o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) n.º 5, a igualdade de gênero deve nortear as condutas e ações governamentais e privadas para a efetivação de uma governança realmente democrática. É importante destacar que, quando são feitas referências à “mulher”, é preciso não assumir uma visão essencializada da identidade feminina, que atribui à mulher maior capacidade de “cuidar”, devido às suas funções domésticas tradicionalmente exercidas, definidas por uma divisão do trabalho com base em critérios sexuais e reforçadas pelo processo de socialização na família e na escola, principalmente. Na verdade, há múltiplas identidades e realidades sob essa denominação geral e abstrata, as quais precisam ser identificadas. Outro aspecto importante a ser mencionado, é que atualmente há sérias críticas a essa visão binária de gênero, pois existem muitas outras identidades de gênero, além da tradicional divisão entre homem-masculino e mulher/feminino. Se a participação da mulher nas esferas de decisão e poder já é relativamente pequena, a de outros gêneros é ínfima; estes seguem invisibilizados e calados!


No tocante ao alcance da meta de universalização do acesso à água em quantidade e qualidade do ODS n.º 6, a participação feminina vem sendo considerada como um diferencial necessário (TINOCO et al., 2022), em contraponto à tendência global neoliberalizante de comoditização das águas, responsável pelo aumento das desigualdades e que reduz a presença feminina na gestão (HARRIS, 2009). A relação da mulher com a água pode ser abordada sob duas perspectivas: os usos domésticos que ela faz da água; segundo uma divisão de papeis tradicional, os cuidados com a casa e os filhos são atribuição da mulher e a água é fundamental para essas atividades. Numa outra perspectiva, envolve a representação e a participação da mulher nos órgãos voltados para a gestão dos recursos hídricos. É interessante mencionar que, geralmente a mulher membro dos CBHs é aquela que consegue se liberar das restrições domésticas a sua participação e, geralmente, apresenta bom nível de instrução (MATOS et al., 2020), uma realidade bem diferente da maioria das mulheres brasileiras.


O CBH Macaé e das Ostras é o segundo mais antigo do Estado do Rio de Janeiro; desde sua criação, caracterizou-se por intensa participação feminina, via Plenária de Organizações Não Governamentais (ONGs) da Macrorregião Ambiental 5 (território estadual de gestão ambiental anterior às RHs), presidida por mulheres enquanto atuou regionalmente. Apesar dessa participação ter sido expressiva desde a mobilização inicial para a formação do CBH (Comissão Pró-Comitê, criada praticamente em paralelo com a promulgação da Política Estadual de Recursos Hídricos, em 1999), ainda permanece menor do que a masculina e principalmente ligada à representação de entidades da sociedade civil e de instituições de ensino e pesquisa.


Das quatro câmaras técnicas, as mulheres ocupam a coordenação de duas (CTEACOM e CETIG), além da coordenação adjunta da CTEACOM, da Câmara Técnica de Lagoas e Zona Costeira (CTLAZOC) e do Grupo de Trabalho de Revisão do Plano de Recursos Hídricos (GT Plano), estratégico para a RH-VIII. Na Figura 1 pode-se observar a preponderância feminina na CTEACOM e na CETIG, ao longo dos últimos 5 anos. Na atual composição da Plenária (2021-2022), a presença da mulher ganhou projeção: são 2 mulheres membros do Diretório colegiado, ambas representantes da sociedade civil; pela primeira vez uma mulher, representante de entidade ambientalista do alto curso da bacia do rio Macaé, ocupa o cargo de diretora presidente. Na sociedade civil, dos 9 representantes titulares, 6 são mulheres; já os setores dos usuários e do Poder Público contam com 2 titulares cada (correspondendo a 66,7%, 22,2% e 22,2%, respectivamente), totalizando assim 10 mulheres representantes titulares (37% do total das representações). Esses dados são semelhantes aos encontrados por Matos et al. (2020) referentes à composição feminina dos CBHs estaduais no âmbito nacional. Em termos de setor de representação, os resultados nacionais indicam que o setor da sociedade civil reúne um número ligeiramente maior de representantes mulheres; segundo a pesquisa, 37,9% das respondentes pertencem a este segmento. Elas também ocupam 21% das cadeiras dos representantes do poder estadual, 19,5% do municipal e 2,81% do poder público federal. Já na parcela dos usuários de águas, as mulheres representam 18,7% dos membros desse segmento (MATOS et al., 2020).


Figura 1: A questão de gênero nas Câmaras Técnicas do CBH Macaé - Fonte: CILSJ, 2022.
Figura 1: A questão de gênero nas Câmaras Técnicas do CBH Macaé - Fonte: CILSJ, 2022.

Também na entidade delegatária do CBH Macaé e das Ostras, o Consórcio Intermunicipal Lagos-São João (CILSJ), a presença feminina se destaca em cargos de suma importância gerencial: tanto a Secretaria Executiva, a Coordenação Técnico-administrativa e a Coordenação de Projetos são ocupadas por mulheres. Cabe ressaltar que sustentar essa participação muitas vezes é complexo, principalmente no tocante às reuniões itinerantes, em locais distantes, que implicam no afastamento dos filhos (quando existem) e dos afazeres domésticos e profissionais, principalmente no caso das representantes da sociedade civil. Já as representantes dos usuários e do Poder Público estão no exercício de suas funções profissionais e contam com facilidades extras em relação à sociedade civil, tais como carros à disposição.


A participação das mulheres sofre a influência do patriarcalismo e do machismo, aspectos estruturais da sociedade brasileira. Essa situação evidencia-se quando, frequentemente, nas reuniões os representantes homens desenvolvem práticas denunciadas pelo movimento feminista, como o mansplaining, manterrupting e bropriating, que visam calar a mulher e recolocá-la “em seu lugar”; práticas as quais as mulheres do CBH Macaé e das Ostras vem historicamente resistindo. Para alcançar maior equidade na gestão dos recursos hídricos da perspectiva da representação, uma das grandes necessidades da cidadania no Brasil é ampliar as esferas de participação feminina junto aos órgãos estatais e espaços públicos de decisão. Enquanto elas ocuparem um número inferior de cadeiras ao dos homens nesses órgãos, dificilmente a realidade de dominação masculina e opressão feminina mudará. As “mulheres das águas” do CBH Macaé e das Ostras seguem afirmando seu espaço de participação conquistado, encarando os múltiplos desafios impostos por um mundo dominado pelos homens e inovando na gestão das águas, com o necessário olhar feminino, que acolhe os jovens e os fortalece para a participação social qualificada.




Referências Bibliográficas


COLES, A.; WALLACE, T (ed.). Gender, water and development. Oxford: Berg Publishers, 2005, 252 pp. ISBN 9781845201258.

HARRIS, L. Gender and Emergent Water Governance: Comparative overview of neoliberalized natures and gender dimensions of privatization, devolution and marketization. Gender, Place and Culture, v 16, n. 4, 2009. https://doi.org/10.1080/096636909030039182009

MATOS, F.; SILVA, F. R.; CKAGNAZAROFF, I. B.; CARRIERI, A. P. As mulheres das águas: algumas reflexões sobre a participação feminina nos comitês de bacias hidrográficas no Brasil. Revista DELOS, Vol 13 Nº 37 (diciembre 2020). Disponível em: https://www.eumed.net/rev/delos/37/mulheres-aguas.html

REGO, V.V.B.S. Paraísos perdidos ou preservados: os múltiplos sentidos da cidadania em áreas de Proteção Ambiental. Tese de doutorado. PPGMA/UERJ, 2010.

SULTANA, F. Gender and Water in a Changing Climate: Challenges and Opportunities. Em: Water Security in a New World, 2017, p. 17–33. https://doi.org/10.1007/978-3-319-64046-4_2.

TINOCO, C.; JULIO, N.; MEIRELLES, B.; PINEDA, R.; FIGUEIROA, R.; URRUTIA, R.; PARRA, Ó. Water Resources Management in Mexico, Chile and Brazil: Comparative Analysis of Their Progress on SDG 6.5.1 and the Role of Governance. Sustainability, v. 14, n. 10, p. 5814, 2022. https://doi.org/10.3390/su14105814

ZWARTEVEEN, M.; MEINZEN-DICK, R. Gender and property rights in the commons: Examples of water rights in South Asia. Agriculture and Human Values v. 18, n. 11, 2001. https://doi.org/10.1023/A:1007677317899.



Maria Inês Paes Ferreira.

Professora titular do IF Fluminense e docente permanente do Doutorado em Modelagem e Tecnologia para Meio Ambiente Aplicadas em Recursos Hídricos. Pós-doutora em Gestão Integrada dos Recursos Naturais (Vancouver Island University). Representa o IF Fluminense no CBH Macaé e das Ostras desde 2007, coordenando sua Câmara Técnica de Instrumentos de Gestão, desde 2010 e ocupando o cargo de Diretora Vice-presidente do CBH de 2012 a 2020. Representa o CBH na Câmara Técnica de Infraestruturas Verdes do CERHI-RJ e é gestora das RPPNs Águas Claras I e II, na região da Cachoeira da Amorosa, no estado do Rio de Janeiro.


Virgínia Villas Boas Sá Rego.

Socióloga; docente UCAM-Nova Friburgo; doutora pelo Programa de Pós-graduação em Meio Ambiente (UERJ); professora aposentada da rede pública estadual (RJ); educadora ambiental; representante da sociedade civil na Plenária do CBH Macaé e das Ostras, de 2007 a 2020, exercendo as seguintes funções: coordenadora da Câmara Técnica de Educação Ambiental, Educação e Comunicação (CTEACOM), de 2009 a 2016, coordenadora adjunta da CTEACOM, de 2017 a 2020, membro do diretório Colegiado do CBH, 2019/2020.


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