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Sumário da água

Blog da REBOB

ÁGUA: valor de mercadoria



Luciane Ferreira


A água é fundamental à vida e por se encontrar em grandes quantidades no planeta, a água sempre foi considerada um bem livre e permanente à disposição de todos. Por isso, tanto os economistas clássicos como os neoclássicos avaliavam-na como um bem comum sem preço estipulado em mercado.


No caso específico da água, reconhecem seu valor de uso, no entanto não admitem que tenha valor de troca, fato exemplificado por Smith (1981, p.17) no paradoxo da água X diamante, contido em seu livro A Riqueza das Nações do ano de 1776:


A palavra valor deve ser observada, tem dois significados diversos e, por vezes, expressa a utilidade de algum objeto particular e por vezes o poder de adquirir outros bens, que a posse daquele objeto proporciona. Um pode ser chamado “valor de uso”, o segundo, “valor de troca”. As coisas com maior valor de uso frequentemente têm pouco ou nenhum valor de troca; e, pelo contrário, aquelas que têm o maior valor de troca, frequentemente têm pouco ou nenhum valor de uso. Nada é mais útil do que a água, mas dificilmente com ela se comprará algo. Um diamante, pelo contrário, dificilmente tem utilidade, mas uma grande quantidade de coisas pode amiúde ser trocado por ele.


O valor de um bem se sustenta na sua utilidade e escassez. Desta forma, a água, por ser abundante, deixa de ser útil, pois o excesso a torna supérflua, como esclarece Bentham (apud Hunt, 1989, p. 149):


O valor de uso é a base do valor de troca... Esta distinção vem de Adam Smith [....], A água foi o exemplo por ele (Smith) escolhido do tipo de bem que tem grande valor de uso, mas que não tem qualquer valor de troca. [...] Ele (Smith) deu os diamantes como exemplo do tipo de bem que tem grande valor de troca e nenhum valor de uso. [...]. O valor (de uso) dos diamantes... não é essencial ou invariável como o da água; mas isto não é razão para se duvidar de sua utilidade para dar prazer. A razão pela qual não se acha que a água tenha qualquer valor de troca é que ela também não tem qualquer valor de uso. Se se puder ter toda a quantidade de água de que se precise, o excesso não tem valor algum. Seria a mesma coisa no caso do vinho, dos cereais e de tudo o mais. A água, por ser fornecida pela natureza, sem qualquer esforço humano, tem mais probabilidades de ser encontrada em abundância, tornando-se assim supérflua.


Miller (1981, p. 98) ao tratar do paradoxo da água X diamante afirma que:

O valor total de uso da água é muito maior se comparado com seu preço de mercado. A diferença, o excedente do consumidor, é imensa. Para os diamantes o contrário é verdadeiro. O valor total de uso de diamantes, isto é, a desejabilidade de pagar, é bastante pequeno em relação ao seu valor de troca, isto é, o preço de mercado para os diamantes. A diferença é também comparativamente pequena; ou seja, o excedente do consumidor para os diamantes é relativamente insignificante quando comparado com o excedente do consumidor de água. Em resumo, a avaliação total da água consumida é muito maior do que a dos diamantes, mas na margem o contrário é verdadeiro.


Ninguém vive sem água e este detalhe levará o mercado a superar qualquer entrave do sistema, então este é um mercado em ascensão, como escreve Barlow & Clarke (2003, p. 157-160):


Embora se discuta se as exportações de água em grande volume serão muito caras para serem economicamente viáveis, o Banco Mundial adverte que todas as reservas baratas, facilmente acessíveis, já são exploradas. Novos suprimentos de água serão de duas a três vezes mais caros. Contudo, diz o Banco Mundial, a demanda existirá independentemente dos custos. [...] os aquedutos, claro, já são muito utilizados para propósitos em agricultura. Mas agora novas tecnologias de aquedutos estão sendo desenvolvidas para utilizá-los na condução de água em grande volume envolvendo travessias entre continentes. [...] A procura por exportação de água em grande volume por meio de superpetroleiros tem aumentado, principalmente, na América do Norte. Tais remessas são enviadas em enormes superpetroleiros, originalmente projetados para transportar petróleo. Com a expansão desse tipo de negócio, algumas empresas de transporte carregariam petróleo e água. Uma das novas tecnologias que disputam com os navios-tanque, como meio de transporte transoceânico de água doce em grande volume, é a construção de enormes bolsas lacradas puxadas por rebocadores [...] É possível produzir uma bolsa com capacidade de transportar cinco super navios-tanque por aproximadamente 1,25% de seu custo.


Como a escassez gera valor à água, seu preço pode vir a subir rapidamente como resultado da articulação dos mercados, de maneira que quanto maior for a escassez, mais se transformará num artigo lucrativo a ser comprado e vendido em mercados globais e mais tenderá a se tornar alvo de especuladores que buscam maximizar resultados. Sobre a mercantilização da água, escrevem Barlow & Clarke (2003, p. 97):

O modelo de desenvolvimento dominante de nosso tempo é a globalização econômica, um sistema abastecido pela convicção de uma única economia global. [...] Como resultado, o mundo está passando por uma transformação tão grande quanto nenhuma outra na história. [...] nessa economia de mercado global, tudo agora está à venda, até mesmo setores já considerados sagrados, como a saúde e a educação, cultura e herança, código genético, sementes e recursos naturais, incluindo o ar e a água.


Neste cenário, a mudança climática, a competitividade econômica e a globalização, aliadas à escassez, intensificam as demandas para transformar a água em uma mercadoria negociável, fato que, de acordo com Barlow & Clarke (2003, p. 96-97), já é realidade:


Em 1996, o porta-voz do Banco mundial declarou para a África do Norte e o Oriente Médio que, de um modo ou de outro, “a água será transportada ao redor do mundo como o petróleo é agora”. “Nos próximos cinco anos”, disse na ocasião, “veremos um reconhecimento ascendente de que a água é uma mercadoria internacional”. [...] Hoje se verifica que regimes de comércio internacionais como a Associação Norte-Americana de Livre Comércio (NAFTA) e a Organização Mundial do Comércio (OMC) já declararam a água como uma mercadoria negociável classificando-a como um “bem” comercial, um “serviço” e um “investimento”. O que isto significa, em efeito, é que se um governo impuser uma proibição à venda e exportação de água em grande volume ou impedir uma corporação de água estrangeira de participar de uma licitação de concessão para o fornecimento de serviços de água, ele pode ser considerado violador das regras comerciais internacionais, de acordo com a OMC ou NAFTA. Esses dois regimes comerciais, em troca, contêm mecanismos de execução projetados para garantir que suas regras sobre disputas comerciais sejam vinculadas a seus governos-membros.


A apropriação da água está associada à perspectiva de lucros. Obviamente, capturar um recurso abundante, disponível e gratuito e transformá-lo em ‘commodity’ é a mais fabulosa das alquimias. Ainda mais em se tratando de algo indispensável à sobrevivência humana. De outro lado, não se percebe nesse comércio a mesma manifestação de interesse na assunção de responsabilidades quanto ao saneamento. Por natureza não associada a uma obra de primeira grandeza, a rede de esgoto passa longe de ser objeto de cobiça de empresas.


Segundo Barlow e Clarke (2003) essa definição conceitual é que irá determinar quem será responsável em assegurar o acesso das pessoas à água: o estado ou o mercado.

Ao citar o necessário papel interventor do Estado no controle e gestão dos bens públicos, o cuidado com os recursos naturais por parte de seus exploradores e a devida garantia de disponibilidade a todos, Machado (2004, p. 125) observa que:


O uso da água não pode ser apropriado por uma só pessoa física ou jurídica, com exclusão absoluta dos outros usuários em potencial; o uso da água não pode significar a poluição ou agressão desse bem; o uso da água não pode esgotar o próprio bem utilizado e a concessão ou a autorização ou qualquer tipo de outorga do uso da água deve ser motivado ou fundamentado pelo o gestor público.


Quando se ingressa, sobretudo, no campo econômico da discussão, é importante lembrar, que o debate sobre o uso da água passa por questões como o progresso e o desenvolvimento. Ao tratar do tema, Almeida lembra que se a noção de progresso se extinguirá no futuro próximo, não se sabe; o que se pode afirmar é que esta noção e outras que porventura vierem a substitui-la, como o desenvolvimento sustentável, por exemplo, ocuparão um lugar estratégico na análise e no debate social, porque elas articulam - ou tentam articular - duas dimensões do saber científico: “a natureza e a sociedade”.


A capacidade de integração entre essas duas dimensões será o objeto central de disputa no próximo século. Esta disputa determinará os riscos de explosão social que contém a lógica do desenvolvimento desigual, lógica essa que resta como contradição fundamental do capitalismo mundial (ALMEIDA, 1990, p. 84).


A questão que se coloca hoje, sugere o mesmo autor, ao reforçar a urgência de se assumir uma postura mais conservacionista e preservacionista, diz respeito, portanto, à possibilidade de nascimento de um novo modo de desenvolvimento ou de “organização social desenvolvimentista, modernizadora e nacionalista, que tenha uma base social, econômica, cultura e ambiental mais sustentável”.

Referencias

BARLOW, Maude; CLARKE, Tony. Ouro azul. São Paulo: M. Books do Brasil, 2003.

BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação.São Paulo: Abril Cultural, 1974.

HUNT, E. K. História do pensamento econômico: uma perspectiva crítica. 7.ed. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2004

MILLER, Roger Leroy. Microeconomia: teoria, questões e aplicações. São Paulo: McGran-Hill do Brasil, 1981.

SMITH, Adam. Uma investigação sobre a natureza e causa da riqueza das nações. São Paulo: Hemus editora limitada, 1981.


Luciane Ferreira - Mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela PUC/PR. Pós-Graduada pela Escola da Magistratura do Paraná. Pós-Graduada em Direito Penal e Processual Penal pelo Centro Universitário Positivo (UNICENP - Curitiba/ PR). Pós-graduada em Direitos Humanos pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana – UNILA. Pós-graduada em Relações Internacionais Contemporâneas pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana – UNILA. Possui graduação em Direito pelas Faculdades Unificadas de Foz do Iguaçu (UNIFOZ). Advogada - consultora e mediadora de conflitos. Questões: Cível - Penal - Aduaneiro - Ambiental. Palestrante. Autora de artigos científicos. Email: luciane.advogada@gmai.com

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