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Sumário da água

Blog da REBOB

A gestão das águas na perspectiva de gênero: uma visão crítica dos ENCOBs à luz da Agenda 2030

A gestão das águas na perspectiva de gênero: uma visão crítica dos Encontros de Comitês de Bacia Hidrográfica à luz da Agenda 2030



Maria Inês Ferreira Paes

Daniela Bogado Bastos de Oliveira

Jacqueline Guerreiro Aguiar


A Lei Federal nº 9433/97 conhecida popularmente como “Lei das Águas” completou 25 anos em 2022, com conquistas a celebrar e desafios a superar. Entre as conquistas, destacamos a participação de 226 Comitês de Bacia Hidrográfica (CBH) no XXI Encontro Nacional de CBH (ENCOB 2022), evento presencial e online, no qual, segundo o Coordenador Geral do ENCOB (REBOB, 2022), “Pela primeira vez conseguimos colocar em prática a questão do gênero. Isso ficou evidente desde a Mesa de Abertura, na qual, 12 homens e 12 mulheres participaram. Ou seja, esta igualdade de 50% nunca havia ocorrido. A mulher veio com força total e marcou presença com participações fundamentais nas discussões sobre os recursos hídricos deste ano. Inclusive, a maioria dos trabalhos apresentados para as comissões abordarem veio de mulheres”. Apesar da fala oficial divulgada nas redes sociais, a participação social das mulheres na gestão das águas ainda carece superar diversos desafios.


Por meio da observação participante no ENCOB 2022 e no Encontro Estadual de CBH do estado do Rio de Janeiro (ECOB 2022), as autoras do presente trabalho têm com objetivo expor de forma crítica como a questão de gênero foi trabalhada no ENCOB 2022 e no ECOB 2022 e propor alternativas de superação desses desafios. Partimos da hipótese de que a importância da mulher na gestão das águas é subdimensionada a nível institucional, alicerçada em um debate essencializante, que destaca o talento feminino, sem, contudo, tocar em pontos mais profundos de equidade de gênero, que possam dar a mulher um lugar de destaque e poder real, visão esta permeada pelo machismo estrutural que ainda caracteriza a sociedade brasileira no momento atual.


Ao pensarmos na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, que ousa propor um novo paradigma civilizatório no qual o desenvolvimento sustentável é concebido como um processo baseado em uma matriz de indicadores que nos permita alcançar a prosperidade e a paz para todos, cuidando do planeta, das pessoas e estimulando parcerias entre os diferentes segmentos sociais que habitam a Terra, sem deixar ninguém para trás, cabe aqui destacar o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5 (ODS 5) que aborda a questão da igualdade de gênero. Entre as nove metas estabelecidas pela ONU e adotadas no Brasil para alcançar o ODS 5 até 2030, no presente trabalho destacamos a 5.1 (“acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda partes”), a 5.4 (reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais), a 5.5 (“garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública”) e a 5.c (“adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas em todos os níveis”).


Relativamente à Meta 5.1, tanto o ENCOB 2022, quando o ECOB 2022, reservaram algum tempo para debates específicos sobre “mulheres e gestão das águas”: uma oficina, com duração de uma manhã, no evento nacional e uma roda de conversa de cerca de duas horas, no início da noite, no evento do estado do Rio de Janeiro. A inclusão desses momentos nos encontros poderia ser considerada um avanço, se comparada a eventos anteriores recentes. Porém, não foi suficiente para abordar temáticas específicas relacionadas à representação e à representatividade das mulheres para o fortalecimento do Sistema de Gestão de Recursos Hídricos (SINGRHI) e muito menos para abordar de forma aprofundada e, sob a perspectiva do ecofeminismo, as questões de gênero, mais amplas. Destaca-se, iniciativas da REBOB Mulher vem tentando reduzir esta lacuna, inclusive com publicações que apresentam as narrativas dos saberes e experiências de Mulheres na luta pelas Águas.


Sabe-se que, como discurso social do sexo, o conceito de gênero é calcado numa estrutura de poder socialmente organizada, sendo uma performance que sinaliza os papéis sociais dos sujeitos, o qual precisa ser levada em conta pela gestão participativa, pois serve para revelar as relações tecidas entre o masculino e o feminino, numa rede de poderes e contrapoderes, envolvendo uma perspectiva relacional, devendo se pautar numa visão de igualdade política e social que inclua tanto o sexo, quanto a classe e a raça. (Bozon, 1999; Butler, 2003; Cardoso, 1993; Scott,1995). Até porque, esta compreensão favorece a promoção da Política Nacional dos Recursos Hídricos, de maneira democrática, numa perspectiva de interseccionalidade.


A estratégia construída pelas mulheres presente na roda de diálogo do ECOB 2022 foi redigir conjuntamente uma Moção de Reivindicação a ser submetida na Plenária do encontro, solicitando a realização de uma oficina de um dia inteiro, de forma a possibilitar a ampliação da participação feminina para debater a temática com o detalhamento adequado no próximo ECOB. Essa Roda de Diálogo foi pensada desde o ECOB de 2016 por mulheres de vários CBHs do RJ e foi solicitada ao Fórum Fluminense de CBHs em várias ocasiões durante o processo de construção do ECOB de 2022.


A moção foi aprovada por aclamação em plenária, na ocasião em que a nova presidência do Fórum Fluminense de Comitês de Bacia Hidrográfica (FFCBH) foi anunciada aos presentes: duas mulheres, presidentes do CBH Bahia de Guanabara e do CBH Piabanha, em consonância com a Meta 5.5 do ODS 5, inaugurando assim a primeira presidência feminina do fórum, o que consideramos um avanço, uma vez que a participação da mulher neste espaço político de participação sempre se fez fundamental, mas relegado a tarefas executivas e de secretaria até o presente ano. Ainda no ECOB, foi aprovada por aclamação uma outra Moção de Reivindicação, solicitando que a implantação de uma estrutura de creche ou similar seja implementada, de forma ampliar a possibilitar o aumento da participação feminina integral nos diversos momentos do evento, o que consideramos um passo contemplar a Meta 5.4 a nível estadual.


Pensando na Meta 5.c do ODS 5, cabe destacar que os fundamentos, objetivos e diretrizes da Política Nacional de Recursos Hídricos, estabelecida pela Lei da Águas (9.433/97), não se articulam de forma explícita com o ideal de ecofeminismo, o qual por sua vez é totalmente aderente aos preceitos da Agenda 2030. Diante da preocupação com a crise ambiental e considerando a diversidade, o ecofeminismo, “propõe a recuperação de valores do cuidado” (com as pessoas, a sociedade e a natureza), “aplicando-os em uma escala do cuidado dos ecossistemas”, sem tecnofobia e sem dominação masculina e faz uma análise crítica do modelo capitalista (MONTANER e MUXÍ, 2021, p. 61). Contudo, por embasar-se em ampla participação social, materializada nos Comitês de Bacia Hidrográfica (CBH), a Lei das Águas indiretamente apoia-se na importância da presença de mulheres políticas que, nos âmbitos local e regional dos territórios que englobam as bacias hidrográficas, defendem a ética e a empatia e são referências reconhecidas a título de homenagem na publicação “Mulheres pela Água”, lançada no ENCOB 2022. Apesar de importante por reconhecer mulheres cujos nomes se destacam como expoentes na gestão das águas em todo o território brasileiro, situamos esse momento como um show com forte viés político, uma grande e bonita homenagem às mulheres, mas, cujas participações lúcidas e contundentes, muitas vezes, foram relegadas a momentos paralelos ou fora das sessões oficiais.


Todavia, o ENCOB foi permeado por falas fortes de mulheres que ressaltaram a necessidade de um verdadeiro reconhecimento do papel das mulheres na gestão dos recursos hídricos no Brasil. Neste sentido, na Mesa de Abertura, a Secretária de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais, ao tratar da relação da mulher com a água, falou o quão somos resilientes, abrindo caminhos e cuidando e a Diretora-presidente da Agência Nacional de Águas e Saneamento falou das narrativas de mulheres por essa mesma gestão, no sentido do cuidar, por ter contato íntimo com a água desde a gestação dos filhos, desde a origem e tratou das experiências envolvendo a gestão plural, enfatizando a importância do lançamento da “Plataforma de Talentos Mulheres pela Água” que, segundo a palestrante, evidencia a participação das mulheres na gestão de recursos hídricos no Brasil, não apenas neste momento, mas historicamente. Debatendo a grande problemática atual da humanidade, na mesa-redonda sobre Mudanças Climáticas, Eventos Críticos e Resiliência, a presença das mulheres foi marcante. A representante da S.O.S Mata Atlântica ressaltou a importância da gestão integrada entre água e florestas. A palestrante considerou que estamos na década da restauração de ecossistemas e que o debate sobre segurança hídrica passa necessariamente pelas soluções baseadas na Natureza (SbN). A representante da Associação Brasileira de Recursos Hídricos (ABRHIDRO) referendou a posição da S.O.S. Mata Atlântica e afirmou que, no contexto da responsabilidade global com inserção local, tendo como pano de fundo a segurança hídrica, o alcance das metas dos ODS 6 e 13 passa necessariamente pelas SbN e infraestruturas verdes, que são prioritárias, mas ainda carecem de grandes avanços no Brasil. Considerou, ainda, que as atividades humanas são impulsionadoras da emergência climática e que a questão da justiça climática (não mencionada pelos palestrantes homens) não pode ser esquecida.


Denúncias, representações teatrais, exposição de cartazes, declamação de poesias e questionamentos ao “Novo Marco Hídrico” também caracterizaram a participação feminina no ENCOB e no ECOB, apesar, de em algumas ocasiões, autoridades mulheres presentes em mesas de debate serem chamadas de “meninas” por moderador homem, talvez sem perceber o tom machista de sua fala. Outrossim, mulheres, imersas no conservadorismo que emergiu dos porões da sociedade brasileira, declararam que a mulher não é coitada e nada tem a reclamar quanto à participação no SIGRHI, denotando que esse mesmo machismo estrutural pode estar lamentavelmente imbricado no âmago do pensar, agir e sentir feminino. Estes exemplos replicam atitudes correntes em vários CBH do estado do Rio de Janeiro (ERJ). Demonstram também porque a criação de GT Mulheres ou GT Gênero não tem conseguido sucesso nos CBH do ERJ.


Uma vez que, em todo o mundo, as mulheres em sua maioria são as principais usuárias e protetoras da água (MORAES e PERKINS, 2007), consideramos a participação pública das mulheres na gestão das águas como um dos pilares centrais do desenvolvimento sustentável. Após participarmos de ambos os eventos, concluímos que, embora haja avanços, a identificação mulher-água ocupa a centralidade do “cuidar do planeta”, gerenciado por homens nos últimos séculos, em cuja humanidade caminha à beira do abismo do colapso ambiental. Detectamos o problema da visão essencializante da mulher, com seus “talentos”, que minimiza a perspectiva política de luta por equidade de gênero, conforme preconiza o ODS 5 da Agenda 2030. Assim, a participação feminina e o debate de gênero sobre uma perspectiva não sexista carecem de fortalecimento no âmbito do SIGRHI a nível estadual, mas principalmente a nível nacional. As falas das mulheres foram poucas em termos quantitativos, mas contundentes em termos qualitativos: quando a mulher tem voz, suas reflexões são expressivas.



REFERÊNCIAS

BOZON, Michel. Sexualidade, conjugalidade e relações de gênero na época contemporânea. In Interseções: Revista de Estudos Interdisciplinares, ano 1, n. 1, p. 133-145, Rio de Janeiro: UERJ, NAPE, 1999.

BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e a subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CARDOSO, Ruth Corrêa Leite. Apresentação. In Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminina. GREGORI, Maria Filomena. Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo: ANPOCS, 1993.

Montaner e Muxí. Política e arquitetura: por um urbanismo do comum e ecofeminista. São Paulo: Olhares, 2021.

Moraes, Andrea e Perkins, Patricia. Women, Equity and Participatory Water Management in Brazil, International Feminist Journal of Politics, 2007, vol 9, edição 4, p. 485-493. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14616740701607986?cookieSet=1. Acesso em: 20/12/22.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação e Realidade, jul-dez, 1995. p. 71-99



Maria Inês Ferreira Paes Ferreira – Proprietária e gestora das RPPN Águas Claras I e II. Pós-doutora em Gestão Integrada dos Recursos Naturais (Vancouver Island University/ CAPES). Representante do Instituto Federal Fluminense (IFFluminense) no CBH Macaé e das Ostras.


Daniela Bogado Bastos de Oliveira - Doutora em Sociologia Política (UENF); Mestre em Direito (UNIFLU). Especialista em Direito Ambiental (UCAM). Professora e pesquisadora do IFFluminense.


Jacqueline Guerreiro Aguiar - Educadora Ambiental. Professora. Especialista em Educação Continuada e à Distância (Cátedra UNESCO- UNB). Especialista em Meio Ambiente (ISER). Facilitadora da Rede Brasileira de Educação Ambiental (REBEA). Coordenadora do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais (FBOMS) e representante da ONG Trama Ecológica no CBH Baía de Guanabara.

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