Karina Queiroz
A perspectiva feminina sobre o seu pleno direito à cidade, hoje principalmente, se traduz como uma medida essencial e estratégica à mitigação dos efeitos da mudança climática. Apesar das mulheres constituírem a maior parte da população brasileira, sendo 109.838.053 em paralelo à 104.990.487 homens, segundo dados do IBGE (2022), elas também são maioria na população mundial mais pobre, o que consequentemente reflete na condição de serem mais dependentes dos recursos naturais ameaçados pelas mudanças climáticas.
E essa realidade nos incentiva a pensar: Qual o papel do território em garantir que essas mulheres exerçam o seu pleno direito à cidade? Como as mudanças climáticas as afetam e como elas podem ser reconhecidas e potencializadas, se tornando importantes agentes da resiliência climática?
As cidades brasileiras como plano de fundo de um cotidiano desafiador, marcado pela falta de inclusão, infraestrutura e segurança, também resultado de um planejamento que parece ignorar a multiplicidade de experiências e vivências de mulheres, especialmente as que ocupam zonas periféricas, passa a exercer um papel de sobrecarga e desamparo. Ignoradas as necessidades básicas de acesso a um ambiente urbano de qualidade, essas mulheres, distintas dentro das suas intersecções de raça, classe, nacionalidade e sexualidade, acabam sendo oneradas pela responsabilidade do cuidado (trabalho este, menosprezado) e de geração de renda, levando-se em conta que no Brasil muitas mulheres são chefes de família. Com isso, por serem desassistidas em todos os aspectos, a escala de impacto sobre a comunidade feminina, é sempre maior (MARX, 2022).
Em um panorama geral, à medida em que temos a precariedade dos serviços e equipamentos públicos, como a falta de saneamento básico, de moradias adequadas e em locais adequados, consequentemente, passamos a incentivar tragédias sociais e naturais. Outro fator é a mobilidade urbana, que junto à ineficiência da segurança pública, representa um grande potenciador de violência e assédio sexual, visto que ela não se refere apenas ao transporte, mas estando diretamente ligada ao uso do espaço público e à experiência de quem se desloca, seja no desenho das ruas e na iluminação pública, por exemplo.
De forma mais específica, as pesquisas em mobilidade e gênero têm evidenciado que a maioria das mulheres tende a realizar mais viagens e de forma encadeada. Segundo a pesquisadora e professora de planejamento urbano em Madri, Inés Sánchez de Madariaga: “[...] elas saem de casa, levam o filho à escola, vão ao trabalho, passam no supermercado e finalmente chegam em casa”. Apesar de invisível e fragmentado, esse padrão de deslocamento é chamado de “mobilidade do cuidado”, conceito que incentiva a perceber o quanto o planejamento urbano está atrelado também à vida doméstica, e o quanto passa a restringir uma ampla parcela da população quando privilegia a oferta de serviços e infraestruturas apenas em áreas bem desenvolvidas, para carros, e em horários de pico, por exemplo (RIBEIRO et. al, 2023).
Assim, embora essas problemáticas do ambiente urbano também sejam estruturais, isto é, historicamente organizadas sob a complexidade de relações e interesses políticos e econômicos, de uma sociedade sexista, é essencial que aconteça a disrupção desses paradigmas que invisibilizam e deslegitimam essas mulheres no seu contexto de desenvolvimento, uso e ocupação (OLIVEIRA, 2021).
Nesse contexto, Niranjan (2022) traz o olhar explorado por Lisa Schipper, coautora de um importante relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), publicado em fevereiro de 2022, onde ela afirma que "Se você está excluída do clube da tomada de decisão – como é o caso da maior parte das mulheres na maioria dos países –, então não pode tomar decisões sobre os recursos dos quais sabe que precisa.” Geralmente as mulheres possuem menos dinheiro, menos oportunidades, e também não são priorizadas pelos tomadores de decisões, que em sua maioria são homens. Essa realidade acaba por aumentar ainda mais a sua discriminação e vulnerabilidade.
Complementarmente, as autoras destacam que as pessoas marginalizadas pela sociedade devido ao seu gênero, estão menos aptas a se recuperar dos efeitos da crise climática. Com isso, o acesso desigual aos recursos, à participação na tomada de decisão dentro das esferas políticas, assim como da deficiência dos sistemas urbanos, torna desproporcional e limitada, a capacidade que essas mulheres têm para se desenvolver socioeconomicamente, utilizar plenamente a cidade, ocupar espaços de poder e principalmente, de se adaptar ao aquecimento global e suas implicações.
E para viabilizar a estruturação de sistemas urbanos críticos no papel de promover um desenvolvimento sustentável, gerando oportunidades e adaptação, Metzker (2023) traz algumas definições do Relatório do IPCC publicado em março de 2023, onde é enfatizado que a construção de uma gestão do clima eficiente, deve estar vinculada às agendas urbanas, de biodiversidade e inclusão. Estas, como caminhos que só podem ser percorridos com um planejamento estratégico que gere valor, e esse cenário pode ser entendido como uma necessidade de investimento cíclico.
Assim, como exemplo do que seria uma atuação integrada dessas agendas, temos mulheres como parte da população vulnerável que ocupa áreas de risco de desmoronamento e enchentes, decorrentes das fortes chuvas que o aquecimento global causa e que acontecem cada vez mais frequentes, dado o aumento dos eventos climáticos extremos. Sendo colocada essa pauta de forma centralizada, seria possível entender e criar propostas articuladas, onde a aplicação de uma política habitacional eficiente direcionaria essa população à zonas seguras e estruturadas, e conjuntamente a outras políticas sociais e econômicas, garantiria ações e planos de inclusão, acesso, autonomia e independência financeira, visto que é um fator capaz também de diminuir a exposição das mulheres à violência.
Além disso, a criação de redes de incentivo, apoio ao cuidado e maternidade, da mesma forma, passaria a aliviar as tarefas domésticas dessas mulheres e permitiria que elas melhor se desenvolvessem profissionalmente. E por fim, se tratando da parte ambiental, seria possível assegurar a regeneração ecossistêmica nessas áreas, que passariam a equilibrar os imperativos duais de preservação e produtividade.
Com isso, requalificar o ambiente urbano de forma compacta, com boas condições de emprego, acesso aos serviços básicos, de moradia, garantindo a equidade de gênero, assim como elevando a qualidade ambiental com a preservação de áreas essenciais à manutenção ecológica, são paralelamente ações que permitem a apropriação do território e de forma sustentável. Essa combinação de diferentes fatores acaba por influenciar na redução das emissões de carbono e mesmo no aumento da sua absorção, com a recuperação do patrimônio natural, o uso de infraestruturas verdes e azuis, e também na valorização do próprio bem-estar humano como estratégia para a adaptação climática (METZKER, 2023).
Portanto, dado o contexto geral de desafios a que as mulheres são submetidas, elas naturalmente sabem melhor utilizar e administrar os recursos naturais, ao mesmo tempo em que oferecem cuidado e desenvolvimento às suas famílias e à toda a sua comunidade. Dessa forma, motivar o seu empoderamento, emancipação e participação sociopolítica no desenho e construção de instrumentos da gestão pública, em diferentes escalas, tornando-as importantes agentes de transformação e resiliência climática, é fundamental e urgente.
Garantindo uma representação justa dos gêneros nas tomadas de decisão, implementada como propósito parte de um desenvolvimento sustentável, poderá renegociar dinâmicas de poder desequilibradas. E partilhar as riquezas e recursos igualmente, fará com que tenhamos a chance de atuar em conjunto, com soluções sobre uma mesma problemática, que é o aquecimento global, e que irá afetar a todos.
Referências Bibliográficas:
ECODEBATE. IPCC Relatório de Síntese AR6 – Mudança Climática 2023. EcoDebate, 2023. Disponível em: <https://www.ecodebate.com.br/2023/03/20/ipcc-relatorio-de-sintese-ar6-mudanca-climatica-2023/>. Acesso em: 10 de abril de 2023.
GHISLEI, Camila. O que é Desenvolvimento Urbano Orientado ao Transporte Sustentável – DOTS? Archdaily, 2020. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/953510/o-que-e-desenvolvimento-urbano-orientado-ao-transporte-sustentavel-nil-dots>. Acesso em: 10 de abril de 2023.
MARX, Vanessa. Por um Brasil com cidades planejadas pelas mulheres. Observatório das Metrópoles, 2022. Disponível em: <https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/por-um-brasil-com-cidades-planejadas-pelas-mulheres/> Acesso em: 05 de abril de 2023.
MARICATO, Ermínia. Habitação e Cidade. São Paulo. Editora Atual, 1997. Disponível em: <https://www.scribd.com/document/360064763/Habitacao-e-Cidade-MARICATOpdf#> Acesso em: 14 de maio de 2023.
METZKER, Thiago. Live: Status atuais e tendências sobre o Relatório Aprovado - IPCC 58. Instagram, 2023.
OLIVEIRA, Jaqueline. Anjo da Manhã: Reflexões sobre Sexismo Estrutural a partir da Análise do Filme Bela Vingança. UFSC, 2021. Disponível em: <https://ojs.sites.ufsc.br/index.php/rppp/article/view/5085/> Acesso em: 05 de maio de 2023.
RIBEIRO, Andressa; SAMIOS, Ariadne; SANTOS, Paula. Cidade das mulheres: planejamento ignora aspectos cruciais para cidades equitativas. WRI Brasil, 2023. Disponível em: <https://www.wribrasil.org.br/noticias/cidade-das-mulheres-planejamento-ignora-aspectos-cruciais-para-cidades-equitativas> Acesso em: 20 de fevereiro de 2023.
SCAPINI, Gabriela; MARX, Vanessa. 8M: mulheres pelo direito à cidade em um contexto de pandemia. Observatório das Metrópoles, 2021. Disponível em: <https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/8m-mulheres-pelo-direito-a-cidade-em-um-contexto-de-pandemia/> Acesso em: 05 de abril de 2023.
Karina é Arquiteta e Urbanista, formada pela Universidade de Fortaleza e Especialista em Sustentabilidade em Cidades, Edificações e Produtos pela Universidade Federal de Minas Gerais. Trabalha com planejamento urbano e ambiental, dentro das vertentes do desenvolvimento sustentável, adaptação, mitigação e resiliência climática. Faz parte da organização Climate Reality Project Brasil, onde desenvolve projetos de educação climática e ambiental. É nordestina e atualmente mora em Minas Gerais.
Email: arq.karinaqueiroz@gmail.com
LinkedIn: www.linkedin.com/in/karina-queiroz
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