Liliane Garcez
Tatiana Ashino
Há exatos dois anos, o mundo está em alerta contínuo por conta de uma doença que afeta indiscriminadamente a todas as pessoas, de diferentes modos e em diferentes espaços. Essa situação pandêmica nos coloca como premente a escolha de atitudes individuais em prol da coletividade, como uso da máscara, o distanciamento social e a vacinação.
Tal conjuntura, para além de evidenciar a já alarmante desigualdade social existente em nosso país, serviu como uma espécie de catalisador, ampliando as iniquidades existentes. Conforme mostra o LabCidade, o número de pessoas que morreram ou foram infectadas pelo SARS-COV-2 está intimamente ligada à classe social a que se pertence, assim como, evidentemente, à região de moradia em cada cidade.
Esta constatação nos leva a refletir sobre a relação entre a garantia efetiva de direitos sociais a todo e cada ser humano, como a saúde e a educação, e nossa capacidade coletiva de enfrentamento de momentos tão complexos e desafiadores como tem se mostrado o combate ao vírus. Segundo dados de agosto de 2020, do Programa Conjunto de Monitoramento da OMS e do UNICEF para Saneamento e Higiene (JMP):
39% das escolas no Brasil não dispõem de estruturas básicas para lavagem das mãos;
em termos regionais, apenas 19% das escolas públicas do Estado do Amazonas têm acesso ao abastecimento de água, ao passo que a média nacional é de 68%;
em relação ao esgotamento sanitário, a situação é ainda mais crítica, pois em alguns estados do Norte, menos de 10% das escolas têm acesso a serviços públicos de esgotamento.
Como apontado desde 2015, quando da elaboração da Agenda 2030, o desenvolvimento sustentável é justamente a articulação entre as dimensões econômica, ambiental e social. Seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e suas 169 metas, são integrados e indivisíveis, e apontam a necessidade de equilíbrio entre esses três aspectos da vida humana no planeta. Exatamente por esse motivo, o debate a respeito de questões ambientais e, destacadamente, sobre mudanças climáticas, têm apontado a relação entre a maneira como temos historicamente nos relacionado com o meio ambiente e o surgimento do coronavírus. Porém, para a maioria das pessoas essa parece ser uma relação intangível. Assim, sem perceber, alimentamos um modo de vida que está entrando em colapso, ao mesmo tempo em que nos percebemos frágeis diante da dimensão da questão.
Foi para mexer com esse imobilismo e atender ao chamamento da Agenda 2030 que, o Instituto Coletivxs[1] desenvolveu no ano de 2020 o projeto Por Onde Andas?.
A partir da escolha de locais públicos abertos à visitação, notadamente unidades de conservação (UC), convidamos pessoas com diferentes corpos e vivências para fazerem passeios, conhecerem e interagirem entre si e com esses espaços. Ao longo do caminho, dialogamos sobre pontos interessantes e indagamos sobre barreiras físicas, comunicacionais e atitudinais que possam ter surgido, colocando em movimento de construção coletiva o conceito relacional de acessibilidade.
Ao aproximar pessoas que não costumam frequentar parques - seja por conta de seus corpos não estarem dentro da ideia de corponormatividade, seja porque as condições de trabalho não possibilitam momentos de lazer, notadamente as mulheres - buscamos fomentar relações concretas entre a preservação ambiental, a vida na cidade e a participação cidadã, promovendo a ruptura com falsas dicotomias.
O Por Onde Andas? tem como princípio de que os locais públicos são lugares de estada e não de passagem, lugares de todas as pessoas e não somente de algumas. Por entendermos a concepção de inclusão como a ideia-ação que induz a modificação de ambientes, estruturas e atitudes, o projeto visa também contribuir com a qualificação desses espaços públicos, ampliando sua acessibilidade, em todas suas dimensões, para que possam receber todas as pessoas, sem exceção.
Alinhados especificamente ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 11 que se refere à cidades sustentáveis, ou seja, cidades que protegem o meio ambiente e promovem a inclusão social, formatamos o Por Onde Andas? para colaborar com o atingimento da meta 11.4 - proteção de nosso patrimônio cultural e natural e da meta e 11.7 - proporcionar o acesso universal a espaços públicos seguros, inclusivos, acessíveis e verdes, em particular para as mulheres, crianças e adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência, e demais grupos em situação de vulnerabilidade. Compreendendo o direito à cidade como direito humano e coletivo e que diz respeito tanto a quem nela vive hoje quanto às futuras gerações, potencializamos o investimento na reorganização dos espaços urbanos que possibilitem cidades inclusivas, seguras, sustentáveis e resilientes. Nossa organização segue 06 ações:
Por conta da pandemia e do consequente fechamento das unidades de conservação, foi reduzido o número de visitas nesse formato piloto. A primeira foi ao Parque Estadual da Cantareira, criado em 1962 e que possui cerca de 7.900 hectares de remanescentes de Mata Atlântica, inserido na Bacia Hidrográfica 06 - Alto Tietê, e é conhecido como uma das unidades que mais recebe público na Região Metropolitana de São Paulo.
Vale destacar que a organização do projeto, em contato com a gestão da unidade de conservação, conseguiu a isenção dos ingressos para todos os participantes, muito em função do objetivo da atividade. De qualquer forma, é importante ressaltar que as pessoas com deficiência e seus acompanhantes têm isenção de ingresso, como parte das ações afirmativas adotadas. A trilha realizada foi a da Pedra Grande com aproximadamente 6km de extensão que nos levou ao Mirante da Pedra, famoso por oferecer ao visitante uma vista panorâmica de São Paulo.
O grupo desta primeira trilha foi composto por dez pessoas, número limite de participantes por grupo conforme protocolos da época. Nesse conjunto de corpos, sentidos e percepções diversas, a trilha da Pedra Grande foi percorrida em cerca de 1 hora e 20 minutos. Foram necessárias algumas paradas, pois as grandes subidas exigiram de nós um grande fôlego. O fato de a Pedra Grande ser uma trilha consolidada e não exigir monitoria, contribuiu para que o grupo se subdividisse espontaneamente, o que possibilitou que os tempos fossem vivenciados confortavelmente. As questões cardíacas, de pressão arterial, de nanismo, de autismo ou de sedentarismo foram colocadas em segundo plano. Na frente, estavam as pessoas e suas vontades de percorrer o trajeto juntas e misturadas que se dispuseram a aproveitar momentos de silêncio e calmaria, raros em cidades como São Paulo, para retreinar sentidos e observar o ambiente magnífico de uma área protegida.
A segunda trilha escolhida está localizada no Parque Estadual Restinga de Bertioga, criado em 2010 e que possui cerca de 9 mil hectares. Essa unidade de conservação tem como objetivo proteger a biodiversidade marinho-costeira que forma o corredor ecológico, entre este parque e o Parque Estadual Serra do Mar, e que abriga também a sub-bacia do Rio Guaratuba. Esta visita foi mobilizada em função do Dia Latino-Americano das Áreas Protegidas, comemorada em todo continente americano. Diferente da experiência anterior, foi necessário contar com a presença de monitores locais para realizar a trilha do Guaratuba. Foram 1h40 na ida, com direito a banho em duas belíssimas cachoeiras, além de duas paradas para observação de atrativos como algumas árvores centenárias, abrigadas pelo parque.
Esse é o Por Onde Andas?. Neste primeiro momento do projeto, que consideramos como piloto, literalmente subimos e descemos serras, a fim de diversificar não apenas os participantes, mas também os diferentes territórios. As duas primeiras visitas mostraram o potencial do projeto para proteção e promoção dos direitos humanos e atingimento do ODS 11, por atuar para proporcionar espaços de diálogo que convidem, em igualdade de condições, pessoas que historicamente têm sido alijadas do debate e da participação social, como instrumento de combate à desigualdade. Pelos depoimentos obtidos, destacamos como principais resultados:
estímulo ao acesso a parques estaduais como opção de lazer e de ampliação do conhecimento sobre UC,
viabilização da participação cidadã de mulheres, crianças e adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência nas UC,
colaboração com a conservação e preservação de áreas protegidas.
Em 2021, iniciamos as tratativas para formalizar um termo de cooperação junto à Fundação Florestal para ampliar o projeto a mais unidades de conservação, a serem escolhidas em conjunto com a Fundação Florestal, e a produção de encarte com balanço das atividades e dicas de acessibilidade a ser distribuído gratuitamente. Além disso, agregamos às nossas ações o estabelecimento de diálogos formativos junto às equipes das unidades de conservação com vistas a desenhar colaborativamente projetos específicos que considerem a vivência de quem trabalha nos parques, das pessoas que utilizam esse espaço público habitualmente e da contribuição daquelas que estão chegando pela primeira vez! Afinal, o desafio é modificar os espaços que já existem para que todas e cada uma das pessoas se sintam parte, independentemente da idade, biotipo, habilidade, vivência, pois a configuração de ambiências saudáveis e equilibradas, para atual e futuras gerações, requer uma atuação responsável, harmônica e articulada entre desenvolvimento econômico, preservação do meio ambiente e cidadania, local e globalmente.
Liliane Garcez é mestre em Educação e psicóloga pela Universidade de São Paulo; e administradora pública pela Fundação Getúlio Vargas. Consultora em Educaçaõ Inclusiva. Autora do livro: “Educação Inclusiva de Bolso” pela Editora do Brasil. É idealizadora e articuladora do COLETIVXS.
contato@coletivxs.com
Tatiana Ashino é urbanista e atua na área de planejamento ambiental de unidades de conservação. É associada do COLETIVXS.
@tatiashino
@coletivxs
[1] O Instituto Coletivxs se define como um grupo plural e horizontal que estuda, dialoga e propõe intervenções em prol da garantia dos direitos humanos para todas as pessoas, sem exceção. Realizamos pesquisas, projetos e assessorias em educação, saúde e sustentabilidade que apostam na construção coletiva como estratégia potente para não deixar ninguém para trás.
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