Rosangela Magalhães
O processo de aprendizado como estudante do Mestrado em Regulação e Gestão das Águas/PROFÁGUA/UERJ contribuiu significativamente para minha qualificação profissional enquanto assistente social atuando dentro da perspectiva de participação social e educação ambiental para população que reside em grande parte na periferia da Baixada Fluminense no estado do Rio de Janeiro.
Porém foi o mergulho no estudo para a realização da pesquisa de mestrado cujo título “Racismo estrutural na gestão de recursos hídricos: O caso do Comitê de Bacia da Baía de Guanabara da Região Metropolitana do Rio de Janeiro” (MAGALHÃES, 2021) que me possibilitou um novo caminhar no trabalho com a população que vive dentro das regiões hidrográficas e são afetado direta ou indiretamente pelas decisões que são tomadas dentro das instâncias deliberativas que estruturam a gestão das águas no Brasil, tanto nos comitês de bacias como nos conselhos estadual e nacional.
O aprofundamento do estudo em torno do racismo estrutural, a identificação dos elementos que o compõem – hierarquia e relação de poder, a compreensão como as práticas racistas se produzem e reproduzem dentro da sociedade brasileira desde sua formação, me permitiu refletir e questionar sobre o fundamento da política da gestão das águas brasileiras que versa sobre uma gestão democrática e participativa de acordo com inciso VI, artigo 1ª da Lei das Águas que traz “a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e comunidades” (Lei n°9.433/1997).
No Brasil, em que a população estimada pelo IBGE (2019) era de 210,1 milhões de pessoas tem um percentual de 56,10% desse total por aqueles que se declararam pretos e pardos podemos afirmar que esse grupo está representado dentro das instâncias deliberativas que compõe a estrutura da política brasileira de recursos hídricos? Alguns podem dizer que o recorte racial é um apelo de vitimização e optar pela discussão somente de gênero e/ou classe social. Mas pontuo que isso somente não dar conta das desigualdades gritantes que a grande maioria da população sofre diariamente nos diversos espaços institucionais formais ou não. Esse texto não tem a pretensão da verdade, até porque não existe verdade absoluta. Acredito que a realidade é dinâmica e como tal deve ser analisada e pode ser reconstruída a cada novo dia, através de novas propostas que visem realmente uma participação social efetiva nos espaços políticos.
Posso falar somente da minha vivência enquanto mulher preta, pobre, estudante e trabalhadora que até o ano de 2020 era uma pessoa e após a finalização da pesquisa de mestrado no ano de 2021 passou a ser mulher preta, pobre, estudante, trabalhadora e NEGRA. Aprendi o significado de “torna-se negro” nas palavras da ilustre Neusa Santos (2021).
A pesquisa deu ênfase em três tópicos. No primeiro foi discutida a questão racial com base principalmente em autores negros, possibilitando a compreensão da formação histórica, social, econômica e política da sociedade brasileira fundamentada no racismo estrutural (ALMEIDA, 2019; CARNEIRO, 2005; MBEMBE, 2018; MOREIRA, 2019; QUIJANO, 1993; RIBEIRO, 2019a; WERNECK, 2013). Em seguida, se discutiu os princípios que devem nortear a política de gestão das águas referentes à participação democrática. E por último, a identificação e caracterização da maioria minorizada localizados dentro da área de estudo com enfoque na questão racial.
Almeida (2019) aponta que o estudo sobre racismo deve ser realizado de forma sócio histórico porque esta categoria tem como característica ir se moldando conforme o contexto social. Por isto, muitas vezes em práticas racistas fica o debate em torno se configura ato racista ou não. No Brasil, infelizmente ainda não realizamos esta travessia, ainda persiste em alguns espaços institucionais o mito da democracia racial muito defendido por intelectuais na década de 30 (FREYRE, 2006). O racismo individual e institucional é mais pontual, enquanto o racismo estrutural é mais complexo porque envolve toda a forma de organização da sociedade e ao mesmo tempo faz parte do seu funcionamento regular. Sendo assim, o racismo estrutural se torna sistêmico e estruturante das relações sociais e cria subjetividade das relações humanas (ALMEIDA, 2019).
O Estado brasileiro ao mesmo tempo em que promove o modus operandi da sociedade em suas dimensões, social, econômica, política e ideológica, concorrentemente é funcional e contribui para reprodução do capitalismo através do racismo estrutural (ALMEIDA, 2019). Nessa efervescência de contradições e conflitos que resultam nas mais diversas desigualdades sociais geradas pelo sistema capitalista que reside à possibilidade de questionar os paradigmas e pressupostos que estruturam a sociedade brasileira. Almeida (2019) chama a atenção para o fato de que o racismo concebe as relações sociais através do papel do Estado, das relações políticas e econômicas e do modo como o mundo é significado através de seus valores, atrelado à questão ideológica.
A política das águas, como qualquer outra política pública, traz contradições porque se espera que seja o resultado de consenso dentro de espaços deliberativos, como é o caso dos comitês de bacias. Os conflitos gerados pelo uso da água estão ligados ao capital político e ao valor da água como bem e recurso necessário ao desenvolvimento. Conflitos que envolvem diversos grupos sociais tanto da sociedade civil como da iniciativa privada e poder público, devem levar em conta os interesses das comunidades tradicionais. Trazer para o espaço dos CBH’s o debate em torno desses conflitos pelo uso da água é de suma importância na construção de uma política mais equitativa de acesso à água como direito e se faz necessário passar pelo debate em torno da temática do racismo estrutural que ao longo da história deixou de fora das discussões os grupos em situação de marginalização racial. Machado (2003, 2004b) coloca que nenhum desenvolvimento sustentável pode existir sem a participação ampliada das populações envolvidas.
Um ponto chave apontado na literatura pesquisada, principalmente por intelectuais negros, foi à tenacidade em não restringir a discussão sobre o racismo somente em suas consequências na vida da população negra. Compreendi esta questão mergulhando no referencial teórico escolhido e tanto discutido. Falar de racismo requer como qualquer outro tipo de conhecimento acadêmico, pesquisa e estudo. Nesse ponto que se explica porque a importância de se debruçar em autores e autoras negras, porque eles irão discutir a questão racial para além de suas mazelas.
Refletir sobre contribuições da filosofia africana na gestão das águas é uma discussão necessária e urgente. Os grupos de comunidades quilombolas e religiões de matrizes africanas podem cooperar nesse sentido. Laigneau (2014), ao discutir as experiências vivenciadas na constituição da gestão de recursos hídricos na França, relata em sua tese a importância que teve a passagem de alguns atores técnicos da gestão das águas pelo continente africano, inclusive o próprio Laigneau. Apesar de não utilizar o termo filosofia africana, o citado autor enfatiza como mudou o modo de compreender as relações e organização social do contexto francês relacionado à questão hídrica a partir de sua vivência no continente africano.
Acredito que seja papel da gestão da política de água olhar para os diversos grupos sociais que se encontram localizados dentro da região hidrográfica, vive no território, faz parte do cotidiano de uma bacia hidrográfica, porém se encontra invisibilizados por esta política que se apregoa democrática e participativa. E aqui faço questão de falar das comunidades quilombolas, religiões de matrizes africanas e comunidades indígenas. São povos com cultura, tradição e história própria que podem contribuir imensamente para a gestão das águas. A vivência deles com a natureza, os recursos naturais, a floresta, a água, é diferenciada e pautada pela reverência, cuidado e respeito que esses temas merecem ser tratados. Temos muito que aprender com eles, e abrir espaço dentro do comitê de bacia para dialogar e compartilhar em torno de um objetivo comum, a conservação e preservação da vida humana.
Somente assim, será possível trilhar o caminho constitucional em busca da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação sinalizado no Art. 3º, Constituição Federal de 1988.
Referências
ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. - (Coleção Feminismos Plurais).
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Institui o Estado Democrático e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: jan., fev., mar. 2020.
BRASIL. Lei Federal n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e dá outras providências. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9433.htm>. Acesso em: 16 jan de 2020.
CARNEIRO, S. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese de Doutorado. USP. São Paulo, 2005.
FREYRE, G. Casa grande e senzala. Global editora; Português. 2006
LAIGNEAU, P. Tristes águas francesas. Tese de doutorado. Porto Alegre; UFRGS, 2014.
MACHADO, C. J. S. Recursos hídricos e cidadania no Brasil: limites, alternativas e desafios, Ambiente & Sociedade, vol. 6, n. 2, p. 121-136, 2003.
MACHADO, C. J. S. Águas e saúde no Estado do Rio de Janeiro: uma leitura crítica do arcabouço institucional-legal. Revista de gestão de água na América Latina, vol. 1, n. 2, p. 51-63, 2004b. MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra; tradução Sebastião Nacimento. - São Paulo: n-1 edições, 2018.
MAGALHÃES, R. H. dos S. “Racismo estrutural na gestão de recursos hídricos: O caso do Comitê de Bacia da Baía de Guanabara da Região Metropolitana do Rio de Janeiro”. Trabalho de Mestrado. Rio de Janeiro; PROFÁGUA/UERJ, 2021.
MOREIRA, A. J. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Editora Contracorrente, 2019.
QUIJANO, A. Colonialidaddel Poder, Eurocentrismo y América Latina. In Edgardo Lander (org.) La Colonialiaddel Saber: Eurocentrismo y CienciasSociales. Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 201-246. 1993.
RIBEIRO, D. Lugar de fala. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019a. – (Coleção Feminismos Plurais). SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro – Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Editora Zahar, 2021.
WERNECK, Jurema.Racismo Institucional – uma abordagem conceitual, texto produzido para o Projeto Mais Direitos e Mais Poder para as Mulheres Brasileiras, abril de 2013.
Rosangela Magalhães
Bacharel em Serviço Social, Especialista em Gestão Pública Municipal, Mestre em
Gestão e Regulação de Recursos Hídricos - ProfÁgua/UNESP/UERJ. Assistente
Social da CEDAE.
e-mail: rhs.magalhaes@hotmail.com
Instagram: rhsmagalhaes
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/3918903139036746
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