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Sumário da água

Blog da REBOB

As nossas águas e as águas dentro de nós



Vania Velloso


“Nós somos filhos das poeiras das estrelas.”

Carl Sagan


“Precisamos ser tratados como os elementos do universo e da terra que está dentro de nós.”

Uma mulher da água.


Nós, mulheres, somos água em muitos sentidos.


Já há algum tempo, a Fernanda Matos - mulher d´água e para as águas - me deu este toque de escrever de novo para o blog/revista on-line de mulheres imersas, submersas e emersas - que são acolhidas e se identificam dentro de suas respectivas águas; ou fluxos ou corredeiras ou igapós ou rios ou lagoas ou cascatas e/ou trombas d´água, por vezes, bem caudalosas e destruidoras. Por vezes, reconstrutoras e águas pacificadoras. Somos água e nos esquecemos até de beber e refletir sobre esse líquido restaurador. Nossa bacia hidrográfica interna é feita de rios largos, estreitos e velozes, de rios vicinais que levam e retiram os líquidos do corpo: do coração, do cérebro, dos rins. da pele e tudo mais. Será que pensamos em nossa bacia hidrográfica? Sempre em movimento ou em bloqueios e assoreamentos da mesma forma como estudamos as bacias nos biomas e nos territórios pelo país afora.


Pouco paramos para pensar em nossas águas, nossos choros reprimidos, nossos choros escondidos. Tantas mulheres que não têm o tempo afetivo para chorar e limpar seus rios....


Privilégio de quem tem uma relação positiva com as águas que nos servem e que precisamos somente abrir uma torneira para uma água relativamente limpa e/ou potável – fria ou quente.


E nós, poucas, muito poucas mulheres, ao redor de mundo, temos acesso à qualidade e à facilidade de água servida no dia a dia. Creio que somos, hoje, 1.2 bilhão sem acesso à água. Diz a estatística que 1 em cada 5 crianças e 3 mulheres em cada 5 habitantes do mundo não tem água, segundo a UNICEF.


Mulheres andam quilômetros a pé, choram e lutam por água para cozinhar, regar suas hortas e matar a seda e de os seus filhos - pelo menos dois copos por dia é necessário, pouco mas seria o mínimo! No Quênia, as mulheres e as meninas, andam 10 km para buscar um balde. Aqui no Brasil, em áreas mais secas, esta situação também ocorre e parece que piorou muito com a pandemia e sem programas de abastecimento ou um serviço que funciona. 40 milhões não tem água potável e dos 160 milhões, supostamente abastecidos, somente 50% tem uma água boa de beber e usar...


Certa vez vi um filme muito sensível, mulçumano, de mulheres e para mulheres, escrito por um romeno que morava na França. A água e seu uso bem como a vida das mulheres como protagonistas do filme.... Um roteiro espetacular daquela vila de guardiães da água, intitulado “La Source de Femmes”.


É sabido, e a gente nem liga, que nós devemos consumir entre 2 e 2,5 litros para manter a saúde e o tal dos fluxos e das hidratações em constantes trocas com o ambiente interno e externo do corpo. É sabido também, que uma pessoa como eu - que nasceu bem e com uma casa limpa e em bairro com infraestrutura – consome entre 110 e 200 litros por dia.


Os dados de águas servidas, sua distribuição e consumo, vocês devem estar por dentro. E nem preciso me estender aqui. Só que piorou e muito na Crise + pandemia e as mulheres como em tudo e nos últimos anos - sejam 100 ou 2 - sofreram e sofrem a maior pressão pela escassez e saúde dos filhos e higiene diária e mensal. As meninas quando menstruam, então, em áreas sem água e/ou com muito tabu não conseguem nem se lavar e ficam constrangidas de usar demais para banhos de asseio.


Vivi setembro como um mês de águas turbulentas, cheio de sedimentos afetivos em suspensão - de memórias e saudades. Minha primavera. Uma mãe líquida e fluída que sou de 4 filhos se despediu da mãe e de sua cadelinha, ambas tão suaves, discretas e femininas. Foram minhas companheiras e guardiãs de meus infinitos momentos de filha e amiga - na boa solidão da escrita, no desenho, nas leituras, nos vasos de temperos e nas regas. Nas noites frias e no preparo de comidas inusitadas do dia a dia ou de fim de semana para essa mãe idosa que foi isolada pela pandemia. Ainda tenho outras duas mães que precisam de presença, sopas e conversas sobre estórias e o lugar amoroso entre mulheres. Precisam de água e saber chorar. E tudo ou quase tudo – na dimensão do tempo - vai ao encontro da acomodação repousante de uma alma em conflito. Eu vivi muitos lutos neste setembro: chorei e me alegrei nas memórias de pessoas que morreram. Morte não é comentada, conversada entre as pessoas. Choros secos ou muito úmidos, também não. As mulheres guardam seus prantos e recantos de solidão ressequida.


Na mata úmida da minha mini chácara de muitas gotas de orvalho e choros solitários, eu caminho e observo o ciclo das águas e das estações. Posso afirmar que moro no meio urbano com cheiro e vibração de mato. Esse mundo das mudanças da natureza ficou mais evidente dentro e fora de mim - nestes sete anos - em que eu arrisquei morar em uma casa com jardim e diversidade. Pela primeira vez eu arrisquei sair do lugar conhecido e supostamente com tudo que precisava.


O clima na minha chácara foi alterado, em termos de tempos úmidos e secos, e os relógios da natureza se encontram bem bagunçados. Hoje em dia, as nossas quatro estações estão em estado de alerta. Elas começavam certinho, em tempos passados, e terminavam quando a outra já batia à porta. O sol, as luas, os bichos e as águas nos avisavam da mudança natural, desde que o mundo é mundo. E a gente, em tempos idos, seguia em calores e frios - úmidos ou secos -, completamente conectadas com a natureza. Não é mais assim. Para onde foram as águas e as metamorfoses conhecidas?

Estas mudanças tão bruscas alteram o meu ritmo. Sou atenta ao detalhe da natureza. Eu me entristeço e tento me adaptar - como muitos - a essas alterações violentas de pressão sobre nossa única Terra.


Na verdade, eu tinha intenção de escrever um texto mais técnico sobre recursos hídricos e mulheres dentro deste assunto. Porém, minha vida deu uma cambalhota e resolvi seguir esse giro e aceitar os momentos frágeis e o que vem de ideia e percepção para a escrita.


Por que nós, mulheres, temos que ser águas fortes e caudalosas com quedas energéticas o tempo todo? Pra que temos que ser tranquilas por fora e aceitar um rio de movimento condescendente em ritmo elegante e o turbilhão não pode ser revelado? Não temos. Resolvi respirar e pensar no fluxo das águas dentro de nós e como somos completas e similares à mãe Terra nestes fluxos...


Voltando para o sensitivo, o que gostaria de dividir com vocês - mulheres, homens e ativistas ambientais e climáticos-, é que a gente fica muito preso nas questões ditas “pragmáticas” e confesso que, de quando em vez, eu tenho birra desta palavra, pois justifica nós não abrirmos nossa intimidade corporal, mental, psíquica e sensitiva. E mundo mais masculino conservador e ainda muito no poder - que nem nos entende na complexidade e idiossincrasia do feminino, clama pela racionalidade. Como se os demais fatores e jeitos de ser não pudessem ser compartilhados com o racional.


Pensem, mentalizem e compreendem as águas, os fluxos dentro de nós e trabalhem, incluindo nossos rios e lagos no cotidiano úmido ou seco de suas vidas.


Um abraço afetuoso cheio de gotas de chuva para vocês...


Referências:



Um textinho didático. Mas vale como informação, mesmo que não muito recente....



Vania Velloso


Sou arquiteta e urbanista, com especialização em filosofia e arte e onde estudei filosofia do cinema. Fiz 3 pós-graduações em gestão socioambiental, territórios e comunicação e educação ambiental. Sou artista plástica, cozinheira, adoro cinema e livros! Hoje, líder pelo Climate Reality Project. Trabalhei anos na Vale SA, desde a criação da área ambiental. Fui conselheira da Care, voluntária na nossa ONG Praticável no Morro dos Prazeres com as mais de 50 mulheres-mães e tenho uma empresa Pêra Projetos de consultoria socioambiental.


Instagram: @vaniavelloso1

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