Jamile Marques
Em um belo fim de tarde, Júlia olha no horizonte o sol se pondo à beira de um exuberante rio. A luz do sol reflete na água calmamente embalada pelo vento suave, reluzente como se ouro fosse. Naquele momento de rara beleza, enquanto mexe com delicadeza seu café saboroso, ela contempla o cenário lembrando das histórias que seus avós e pais a contaram sobre qual pujante e caudaloso era aquele rio. Hoje, apesar de ainda belo, Júlia percebe que diante de tantos impactos o mesmo curso d´água já não é capaz de oferecer tantas opções de lazer como outrora, onde a vizinhança se banhava, pescava e navegava em sua límpida e farta água enquanto as aves ganhavam o céu em uma revoada de tirar o fôlego.
A história que relata os múltiplos usos do rio nos remete à um dos instrumentos de gestão dos recursos hídricos, o enquadramento dos corpos d`água. O Capítulo I. Art 2°. Inciso XX da da Resolução n° 357 de 2005, define o enquadramento como o “estabelecimento da meta ou objetivo de qualidade da água (classe) a ser, obrigatoriamente, alcançada ou mantido em um segmento de corpo de água, de acordo com os usos preponderantes pretendidos, ao longo do tempo”. É importante frisar ainda que a seção II da Lei n° 9.433/1997 em seus artigos 9° e 10° versão sobre o enquadramento:
“Art 9°. O enquadramento dos corpos de água em classes, segundo os usos preponderantes da água, visa a: I. assegurar às àguas qualidade compatível com os usos mais exigentes a que forem destinadas; II. Diminuir os custos de combate à poluição das águas, mediante ações preventivas permanentes.
Art 10°. As classes de corpos de água serão estabelecidas pela legislação ambiental”.
Em cumprimento ao artigo 10° da PNRH, o Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) elaborou a Resolução n° 357 de 2005. Esta normativa define que o enquadramento representa metas finais a serem alcançadas para o corpo hídrico e que deverão, portanto, serem fixadas metas intermediárias e progressivas de cunho obrigatório. As metas consistem em parâmetros de qualidade da água cientificamente mensuráveis, como Oxigênio Dissolvido (OD), Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO), pH, coliformes termotolerantes, cor, sólidos sedimentáveis e temperatura, cujo limite máximo permitido varia considerando águas doces, salobras e salinas. Cada classe de uso é delimitada por padrões. Ou seja, valores limites adotados como requisito normativo de um parâmetro de qualidade de água ou efluente. Ao exceder o valor limite da classe, a água passa a ser enquadrada na classe seguinte. A Resolução n° 357/2005 prevê cinco classes de qualidade (Figura 1).
Figura 1. Classes de qualidade previstas na Resolução n° 357/2005 (Costa, 2009).
A Resolução CONAMA n° 357/2005 prevê, portanto, os seguintes usos múltiplos para os recursos hídricos mediante sua classe de qualidade, alguns foram narrados na história de Júlia:
Abastecimento para consumo humano
Preservação do equilíbrio natural das comunidades aquáticas
Preservação dos ambientes aquáticos em unidades de conservação de proteção integral
Proteção das comunidades aquáticas
Recreação de contato primário e secundário
Aquicultura e atividade de pesca
Dessedentação de animais
Irrigação
Proteção das comunidades aquáticas em terras indígenas
Navegação
Harmonia paisagística
O enquadramento possui estreita relação com a ecologia dos ecossistemas aquáticos uma vez que as classes de qualidade são determinadas por parâmetros físico-químicos que influenciam a composição biótica do corpo d´água. De acordo com a normativa brasileira sobre o tema, o enquadramento deve ser proposto pelo Comitê de Bacia Hidrográfica. No entanto, é notório que muitos membros dos comitês não possuem entendimento técnico multidisciplinar necessário para participar de forma qualificada do processo de enquadramento dos corpos d´água.
Identificando esta dificuldade, desenvolvi um treinamento voltado para os integrantes dos comitês de bacia abordando a ecologia dos ecossistemas aquáticos, legislação e controle social no âmbito do Mestrado de Pós-Graduação em Ecologia (PPGE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conforme metodologia expressa na figura 2.
Figura 2. Representação esquemática da metodologia utilizada durante a pesquisa de Mestrado (PPGE-UFRJ).
O comitê estudado é representativo da RH VI do Estado do Rio de Janeiro e chama-se Comitê de Bacia Hidrográfica Lagos São João (CBH LSJ), criado em 08 de dezembro de 2004 através do Decreto Estadual nº 36.733. O CBH LSJ é composto por doze municípios da Região dos Lagos: Araruama, Armação dos Búzios, Arraial do Cabo, Cabo Frio, Cachoeira de Macacu, Casimiro de Abreu, Iguaba Grande, Rio Bonito, São Pedro da Aldeia, Saquarema, Silva Jardim e Maricá.
Mediante às lacunas de conhecimento sobre o enquadramento detectadas pela entrevista semiestruturada com os membros do CBH LSJ, bem como os conceitos ecológicos relevantes para o enquadramento identificados na pesquisa secundária, sugeri a seguinte estrutura para o curso de capacitação para o enquadramento em classes de usos conforme ilustra o quadro 1.
Quadro 1. Estrutura do curso de capacitação para integrantes de Comitês de Bacias Hidrográficas.
Com o estudo desenvolvido no âmbito da minha pesquisa de Mestrado, intenciono contribuir para qualificar a participação dos membros dos Comitê de Bacia Hidrográfica, uma vez que o curso supracitado pode ser aplicado a qualquer comitê mediante as adequações que seus membros julgarem pertinente. Assim, espera-se que com iniciativas de qualificação como esta, os integrantes dos CBH evoluam do estado de manipulação para o efetivo controle cidadão (Arnstein, 1969).
Referências
ARNSTEIN, S. “Uma escada da participação cidadã”. Tradução Markus Brose. Jounal of the American Planning Association. Título original: “A ladder of citizen participation” Vol.35, nº4 p.216-224, julho 1969.
BRASIL. Resolução CONAMA nº 357 de 17/03/2005: dispõe sobre a classificação dos corpos de água e diretrizes ambientais para o seu enquadramento. Diário Oficial da União, Brasília 2005.
BRASIL. Lei nº 9.433 de 08/01/1997: institui a Política Nacional de Recursos Hídricos. Diário Oficial da União, Brasília.
COSTA, M. P., CONEJO, J. G. L. A., 2009, “Implementação do enquadramento dos corpos d’água em bacias hidrográficas: conceitos e procedimento”. XVIII Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos, Campo Grande, MS, Brasil. 22-26 Nov.
SILVA, JAMILE DE ALMEIDA MARQUES DA. Uma proposta de capacitação de comitês de bacia para o enquadramento de corpos d’água em classes de qualidade a partir da ecologia. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação. Universidade Federal do Rio de Janeiro [UFRJ] Rio de Janeiro, UFRJ, 2012.
Jamile Marques é Bióloga e Mestre em Ecologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Especialista em Gerenciamento de Projetos pela Fundação Getúlio Vargas. É idealizadora, organizadora e autora do livro Gestão de Projetos Socioambientais na Prática: Conceitos, Ferramentas e Casos de Sucesso publicado em 2022, no Dia Mundial da Água, pela Editora Brasport.
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