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Sumário da água

Blog da REBOB

Mulher, negritude e o cuidado: ensaio sobre a perspectiva de gênero e clima



Julia Espeschit Rodrigues


O clima está mudando. E pode-se afirmar que este é reconhecidamente um grande desafio para o desenvolvimento e bem-estar das gerações presentes e futuras e requer soluções em diferentes níveis e espaços de governança (Giddens, 2009). A natureza multidimensional e transversal dos efeitos e soluções relacionados à mudança climática exige uma análise do problema de maneira ampliada, do global ao local, sem deixar de considerar as diferentes realidades e processos sociais, econômicos, culturais e políticos dos sistemas de governança que estão sob análise.


Há pelo menos cinco décadas que as mudanças climáticas estão sendo discutidas na arena das políticas públicas internacionais e nacionais. A aceleração do aumento das temperaturas no globo provocada por ações antrópicas contribui para a maior recorrência de desastres naturais, o aumento no buraco da camada de ozônio e o provável esgotamento de recursos não renováveis, que são a base da estrutura dos principais meios de produção vigente. É urgente uma mudança no paradigma da relação ecossistêmica humanidade-natureza.


Chegamos ao século XXI em uma situação de difícil reversão das condições ecossistêmicas para a continuidade da vida no planeta. Ao contrário do que se imaginava há algumas décadas, a conta dos efeitos das mudanças climáticas não será paga pelas “gerações futuras”. A crise climática provoca desafios no presente que precisam ser enfrentados.


Os efeitos da mudança climática envolvem desequilíbrios ecossistêmicos, como elevação do nível do mar, com o desaparecimento de ilhas e cidades litorâneas, e o aumento da frequência de eventos climáticos extremos, como tempestades tropicais, ondas de calor, nevascas, furacões etc. Outros riscos potenciais estão relacionados à incidência mais frequente de desastres socioambientais, como do aumento de ocorrências de endemias como dengue, chikungunya, ebola e outras devido a desequilíbrios ecossistêmicos e aproximação de humanos com habitat naturais de animais hospedeiros de doenças.


Tudo isso reforça a ideia de que a vulnerabilidade e a desigualdade são questões indissociáveis à dimensão climática. Os mais vulneráveis são também os mais expostos aos efeitos da mudança do clima. O presente ensaio visa então elucidar como e porque não há soluções para a emergência climática sem o enfrentamento às desigualdades, principalmente a desigualdade de gênero.


Então… por que gênero e clima?


Não é incomum observar que as mulheres são recorrentemente posicionadas em espaços de subalternidade. Geralmente são elas que são podadas em lugares de fala, possuem escassa representação política, sindical e nos espaços de poder, geralmente têm menor independência econômica e são vítimas de inúmeros tipos de violências. A distribuição desigual de trabalhos domésticos e de cuidados também faz parte do que é considerado papel social das mulheres. Tudo isso faz com que certas hierarquias sociais, a segmentação do mercado de trabalho e assimetrias de oportunidades perpetuem.


Ainda é possível observar opções exclusivas de trabalho feminino, restrita a setores produtivos associados com a reprodução, que reforçam uma separação artificial entre trabalhos femininos e trabalhos masculinos, onde os primeiros são pior remunerados e com menores direitos trabalhistas.


A autora feminista Federici (2019), destaca que a divisão sexual do trabalho reforça a prevalência de mulheres no trabalho produtivo, o que faz com que elas sejam mais dependentes do acesso a recursos comuns. Isso fortalece a relação entre essas mulheres e a terra, a sua ancestralidade e os saberes comuns, e nesse sentido essas mulheres se mostram mais comprometidas com o cuidado e defesa da natureza. Ao redor do mundo as mulheres se destacam como principais defensoras da terra e dos recursos naturais, atuando na linha de frente do enfrentamento contra expropriações, em defesa da agricultura de subsistência e demonstrando formas de produção, consumo e organização social de bases colaborativas e comunitárias. É com base nesse pensamento sistêmico que se desenvolve o Ecofeminismo, que tem como um dos objetivos propor um projeto de desenvolvimento econômico que inclui o equilíbrio entre produção, consumo, meio ambiente, ecologia e natureza.


O Ecofeminismo - termo cunhado na década de 1970 por Françoise d`Eaubonne - é um movimento que pressupõe uma relação intrínseca entre mulher e natureza, negando o afastamento desses dois elementos provocado pela ciência. Nessa abordagem, a subordinação das mulheres, em todas as culturas, é o que desequilibra todo o sistema de desenvolvimento, seja ele econômico, social, ambiental ou político. O patriarcado perpetua uma lógica do poder machista, que afasta a ideia de que o ser humano é natureza, e que, portanto, a natureza existe para ser explorada. Daí a luta de feministas pela libertação da mulher oprimida, na relação de gênero, estar associada ao movimento ecofeminista de libertação da mulher e da natureza, ambas exploradas.

A união dos movimentos feminista e ecológico podem provocar uma mudança radical nas relações socioeconômicas e nos valores da sociedade industrial, já que a origem do poder desta ordem social tem o seu pilar nas relações de exploração - da natureza e dos corpos feminilizados. A tendência do Ecofeminismo Construtivista - que é a mais compatível com a minha forma de enxergar a relação entre gênero e clima -, diferente do ecofeminismo clássico, aponta que a relação da mulher com a natureza e com a sua proteção não é uma característica intrínseca do sexo feminino. Nesta visão, a explicação sobre a relação à proteção da natureza e o sexo feminino é cultural, produto da divisão social do trabalho e de uma estrutura social marcada pela desigualdade.


Contudo, não é possível falar de uma única e homogênea categoria de mulheres, tampouco dizer que as opressões repercutem sobre corpos feminilizados de uma única maneira. A discriminação e desigualdade nas condições de vida e de acesso afetam de diferentes formas mulheres e meninas, e é preciso compreender o caráter sistêmico da opressão a partir de uma perspectiva interseccional, sob a lente da decolonialidade.


As políticas públicas geralmente desconsideram essa perspectiva, com a consequente falta de transversalidade da dimensão de gênero. Nas estratégias públicas de mitigação e adaptação à mudança climática não é diferente. Os eventos extremos provocados pelas alterações do clima, assim como a inação do poder público sobre essas questões, irão potencializar as iniquidades de gênero. Os corpos feminilizados sofrem especialmente pela perda da biodiversidade e destruição de ecossistemas, e pelos eventos extremos provocados pela mudança do clima.


As mulheres pobres, moradoras de periferias urbanas, são a maioria dentre as vítimas de enchentes, desastres naturais e eventos extremos. Quando são forçadas a deixarem as suas casas por conta de desastres, ficam ainda mais vulneráveis a violência de gênero.Mulheres quilombolas têm uma relação estreita com seu território, e a diminuição de chuva e maiores períodos de seca, provocados pela mudança climática, dificultam o plantio e as condições de subsistência. Com isso, há um aumento da chance dessas mulheres serem obrigadas a deixar os territórios em busca de sobrevivência.A perda da biodiversidade, como o desaparecimento de animais e frutas nativas, ocasiona também a perda de roças e potencializa a eclosão de doenças não-comuns, além do aumento da incidência de incêndios. Essas são algumas alterações já relatadas por mulheres indígenas em seus territórios, que colocam em risco a suas comunidades.As mulheres trans tendem a viver em locais precários, sofrer maior violência com base na sua identidade de gênero e são menos propensas a receberem ajuda em casos de desastres climáticos.As agricultoras familiares não têm o mesmo acesso a recursos (mão-de-obra, serviços financeiros, tecnologia) que os homens. Além disso, as mulheres sem terras, indígenas e quilombolas possuem mais dificuldades em obter terras.Em casos de pandemia, as mulheres são as mais afetadas. Normalmente são elas as responsáveis pelos cuidados com os familiares que adoecem, o que gera uma maior possibilidade da perda de emprego e consequente diminuição da renda e da independência econômica.


Para além da compreensão de que as mulheres são as mais atingidas pelos efeitos da mudança do clima - e, como explicitado acima, de maneiras diferentes entre mulheres e meninas - ressalta-se também a importância de considerar as mulheres nas soluções à crise climática.


As mulheres podem ser protagonistas nas atividades econômicas relacionadas à mitigação e adaptação da crise climática. Muitas já contribuem para frear o agravamento desta crise, apesar de serem pouco reconhecidas por isso. Mulheres latino-americanas, por exemplo, são as principais responsáveis pelo cultivo de hortas, o chamado “quintal” muito comum no Brasil, com uma imensa variedade de plantas e com menos impacto no meio ambiente. Essas ações possuem um importante papel na conservação da agrobiodiversidade e na segurança alimentar de muitas famílias, já que, diferente de outros países, a principal fonte de emissão de gases de efeito estufa do Brasil advém da mudança do uso da terra, ou seja, do desmatamento.


Mesmo em áreas urbanas - onde se concentra a maior parte da nossa população - as mulheres lideram a continuidade do cuidado com a terra e com a produção de alimentos. Essa produção, associada a tecnologias atuais, como o cultivo de alimentos hidropônicos ou fazendas tecnológicas, podem produzir uma grande quantidade de alimento de qualidade com uma emissão de carbono reduzida, além de serem sustentáveis no uso de água, energia e não precisarem de serem transportados por longas distâncias.


Ainda assim, embora ocupem lugar de centralidade na questão produtiva, as mulheres seguem não tendo o mesmo acesso a recursos produtivos que os homens, incluindo: terra, pecuária, mão-de-obra, serviços financeiros e de extensão, e a tecnologia. Os desafios enfrentados por elas estão essencialmente ligados à estrutura do poder. Em muitos casos, a titularidade da terra, por exemplo, não está no nome das mulheres, o que dificulta o acesso a políticas de financiamento ou de extensão rural. Sendo assim, desenvolver políticas para a soberania alimentar sem discutir as relações de gênero existentes resulta na manutenção da divisão sexual do trabalho e na invisibilização dos modelos alternativos protagonizados por elas.



Referências Bibliográficas


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Julia Espeschit Rodrigues, Mãe da Olívia e da Elena, Cientista do Estado e Mestre em Administração Pública. Tenho experiência profissional em Monitoramento & Avaliação de projetos sociais e políticas públicas, elaboração de Relatórios de Sustentabilidade, relacionamento institucional e com comunidades, gestão de projetos e facilitação de grupos. Sou ativista climática, como coordenadora do Núcleo MG do Climate Reality Leaders e ocupo espaços de participação da sociedade civil nas discussões de políticas climáticas na cidade de BH. Tenho como propósito atuar como agente de transformação para a promoção de organizações mais sustentáveis em todas as suas dimensões, visando a justiça socioambiental e redução das desigualdades. Contato: https://www.linkedin.com/in/juliaespeschitrodrigues/


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