MP do setor elétrico inverte os papéis entre Regulador e Regulado na gestão dos recursos hídricos, cria insegurança jurídica e aumenta o risco hídrico para os demais usuários de água.
Sensíveis à gravidade da crise hídrica que o Brasil enfrenta e à necessidade de envidar esforços conjuntos para evitar um apagão energético e de acesso à água, o Observatório da Governança das Águas (OGA Brasil) vem a público manifestar preocupação com os impactos da Medida Provisória no. 1.055, de 28 de junho de 2021 (MP 1055). Ao sobrepor-se às prerrogativas da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), a MP 1055 impacta o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH) e principalmente a governança das águas que vem sendo construída desde os anos 1990 para a promoção da segurança hídrica dos usos múltiplos no Brasil.
Ao publicar a MP 1055 para tratar da crise hídrica atual no país como se fosse somente uma crise energética, o GOVERNO FEDERAL DISTORCE OS PRINCÍPIOS E FUNDAMENTOS DA LEI DAS ÁGUAS DO BRASIL E O SEU MODELO DE GOVERNANÇA E DE GESTÃO DAS ÁGUAS NO BRASIL.
Uma das principais mudanças que a MP traz é atribuir à Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética (CREG) a definição de diretrizes obrigatórias e estabelecer – ainda que em caráter temporário – os limites de uso, armazenamento e vazão de usinas hidrelétricas. Na prática inverte os papéis entre “regulado” e “regulador” na utilização dos recursos hídricos, pois centraliza no setor usuário de hidroenergia decisões de enfrentamento da crise de água cuja coordenação é legalmente atribuída à ANA, justamente por envolver TODOS OS USOS MÚLTIPLOS, inclusive a geração de hidroenergia. Da mesma forma, ao priorizar, neste grave momento de escassez, o uso da água para uma única finalidade – geração de energia –, a MP 1055 fere os princípios da Lei das Águas do Brasil e da própria Constituição Federal, mesmo sendo o setor elétrico altamente estratégico para o país.
Portanto, a MP 1055 gera insegurança jurídica, que pode se intensificar com a persistência da seca, e tem grande potencial de criar ou agravar conflitos entre usuários de água, ao aumentar os riscos hídricos para outros setores também estratégicos, como o setor agropecuário, e sobretudo o abastecimento público, que é um uso legalmente prioritário em situações de escassez.
A criação dessa instância decisória centralizada (CREG), por meio de Medida Provisória, sem discussão com a sociedade, contraria também os fundamentos e os princípios da Política Nacional de Recursos Hídricos e do SINGREH, instituídos por meio das Leis Federais 9.433/97 (Lei das Águas) e 9.984/2000 (Lei de criação da ANA). A Lei das Águas é clara em seu inciso III do Art. 1º, que enumera os seus fundamentos e define o uso prioritário dos recursos hídricos em situações de escassez – o consumo humano e a dessedentação de animais – e, ao mesmo tempo visa garantir o abastecimento público e industrial, o aproveitamento dos potenciais hidrelétricos, o transporte aquaviário, a irrigação, o lazer e turismo, entre outros usos. O princípio geral é o de que a gestão de recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas, de forma descentralizada, com a participação do Poder Público, dos usuários e da sociedade civil, representados nos Conselhos Nacional e Estaduais de Recursos Hídricos e nos Comitês de Bacias Hidrográficas.
Esta estrutura, que tem como base um modelo de gestão descentralizada e participativa, tem sido colocada à prova com a intensificação de eventos extremos de seca no país nos últimos anos e conta com experiências consideradas como bemsucedidas. No enfrentamento da crise hídrica na Bacia do rio Paraíba do Sul por exemplo, que compreende os Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, todas as decisões de mudanças das regras operacionais dos reservatórios de geração de energia, entre 2014 e 2016, foram tomadas em ambiente participativo pelo Comitê de Integração CEIVAP, ANA, Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), usuários, gestores estaduais, comitês estaduais, municípios, no âmbito de um Grupo Técnico altamente operativo e célere nas suas decisões. Todas as sugestões do GT Ceivap, coordenado à época pelo ONS, foram sistematicamente transformadas em resoluções temporárias pela ANA (justamente a atribuição agora sobreposta pelo CREG, temporariamente, por meio da MP). Essa gestão da crise hídrica evitou o colapso do abastecimento da Metrópole do Rio de Janeiro e de muitos municípios ribeirinhos, minimizou os impactos no setor industrial e conseguiu evitar que o conjunto de reservatórios do setor elétrico permanecesse com níveis críticos de reservação de água durante todo o período da crise.
Outro exemplo foi o processo de construção da Resolução ANA n° 2.081/2017, que estabelece novas condições para a operação do Sistema Hídrico da bacia do São Francisco. Elaborada no âmbito do SINGREH e com amplo debate e participação dos atores interessados, as regras estabelecidas respeitaram os usos múltiplos da água e garantiram a recuperação e atual manutenção dos volumes armazenados nos reservatórios da bacia.
Em suma, a governança da água pressupõe sustentabilidade hídrica, prevenção e solução de conflitos por meio de acordos consistentes e duradouros, firmados com base em princípios relevantes da vida em sociedade, da transparência, da prestação de contas e da convergência para melhor enfrentar as variabilidades e mudanças climáticas. Nesse sentido, a regulação a cargo da ANA e o planejamento para a gestão do risco de crises hídricas devem ser embasados em dados e informações tecnicamente consolidados, no conhecimento científico, nos princípios da gestão integrada e no Direito Humano de acesso à água segura, em qualidade e quantidade.
Enfraquecer o papel da ANA e do SINGREH em competência tão central e estratégica para a regulação dos usos da água, concentrando o poder decisório em uma Câmara de Regras Excepcionais, composta unilateralmente pelo Poder Público Federal e sob coordenação de um setor usuário, fere a legislação vigente, potencializa conflitos, aumenta o risco hídrico e distorce a tão almejada governança da água no país. Pois as instâncias do SINGREH, a gestão integrada e a governança das águas no Brasil foram criadas justamente para aumentar a segurança hídrica dos usos múltiplos, inclusive a geração de hidroenergia, e prevenir e minimizar conflitos pelo uso dos recursos hídricos, sobretudo em situações de escassez e crise hídrica.
Subscrevem esta Nota Pública:
Observatório de Governança das Águas – OGA Brasil
Associação de Moradores do Alto Gávea (AMALGA/RJ)
Associação Jaguamimbaba (SP)
Instituto Oca do Sol (DF)
International Rivers (IR)
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