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Sumário da água

Blog da REBOB

O futuro do Saneamento é feminino



Camila Figueredo Miranda


Já ouviu falar que é insanidade fazer a mesma coisa várias vezes e esperar resultados diferentes? Foi Albert Einstein que disse isto. E já se deparou com a afirmação: “Engenharia é coisa de homem”? Esta veio dos preconceitos impregnados em uma sociedade patriarcal, a qual entende que cálculos e grandes responsabilidades não devem estar vinculados às mulheres. Pois, eu, engenheira civil e sanitarista, discordo veementemente desta última afirmação. Na verdade, acredito que ela está bloqueando a mudança que precisamos realizar para obtermos resultados diferentes, um futuro mais ambiental e socialmente sustentável.


Desde que me entendo por gente que ouço que engenharia não é para mulher. Mas eu sempre fui muito próxima dos números, tenho facilidade com resolução de problemas, sou muito ambiciosa, sou propensa a liderar grupos, costumo me importar e propor melhorias para os desafios da cidade... E sou mulher. Faço o que com todas essas habilidades? Ingressei meus estudos no ensino superior num dos cursos mais tradicionais, numa universidade federal em 2011. Era a primeira vez que a turma de Engenharia Civil tinha metade dos alunos do sexo feminino. Senti que as coisas estavam mudando. Mas como demoram para mudar, não é mesmo? Atualmente, estou finalizando um mestrado em Engenharia Sanitária num instituto europeu de excelência em educação para recursos hídricos... Adivinha quantas alunas tinham na minha sala? Seis! E duas desistiram no meio do caminho. Sabe quantas professoras tive nessa pós-graduação? Quatro. A baixa atuação de mulheres na Engenharia ainda é um problema evidente. Segundo o CONFEA/CREA, numa pesquisa realizada em 20221, o percentual de mulheres registradas como engenheiras no Brasil era de 20% do total de profissionais. Apesar das políticas de equidade de gênero, ainda todo o sistema educacional e o mercado de trabalho favorecem àqueles com atributos masculinos. Ser mulher nesse cenário não é nem um pouco fácil. Poucas se permitem estudar engenharia. Poucas conseguem uma vaga no mercado de trabalho. Pouquíssimas continuam a se especializar na área. E assim, a sociedade só perde por não ter um setor de produção equipendente, onde mulheres e homens trabalham em igualdade, onde soluções mais criativas e diversas são propostas por indivíduos diferentes que se complementam.


Por outro lado, a promoção do equilíbrio também se mostrará numa tendência moderna na construção civil, que já era utilizada pelos humanos há séculos, e que vai promover a concepção de métodos de engenharia baseados na natureza. Onde “nada se perde e tudo se transforma”. Ou onde para um funcionamento saudável e duradouro de um sistema, o equilíbrio precisa ser estabelecido, caso contrário, um lado se impulsiona enquanto o outro padece. A biomimética parece ser o caminho para se atingir um desenvolvimento das sociedades de forma sustentável. Atualmente, infelizmente, o que vemos na Engenharia são nossos recursos naturais e sociais sucumbirem, enquanto o capital se sobressai. É um desequilíbrio que não nos permitirá uma existência perdurável, como todo desequilíbrio na natureza. Exemplos atuais nacionais podem ilustrar essa dinâmica: produções lucrativas de vinhos às custas de trabalho escravo; produção de energia a expensas de deslocamento de comunidades, inundações de grandes áreas verdes, e impactos irreversíveis na fauna e flora local; exploração multimilionária de minério de ferro aprovada sem planos de contingências, sem controle de operação e inspeção adequados, sem multas compatíveis com os reais potenciais danos socio-ambientais envolvidos... Não faltam situações onde o capital, o resultado final e o “fazer a todo custo” são valorizados neste setor em detrimento do bem-estar social, dos biomas locais e da temperatura global.


Enquanto a biomimética pode inspirar a criação de soluções mais sustentáveis para nossos problemas, acredito que um olhar mais aprofundado acerca do entendimento de quem faz a Engenharia ainda precisa ser discutido. Podemos, quem sabe, olhar a psicologia analítica para entendermos esta configuração de atores e influências. Carl Jung, fundador da psicologia analítica, traz o conceito de duas forças presentes no ser humano e no coletivo: energias masculinas e femininas2. De maneira geral, homens teriam prevalência do que é denominado de energia masculina e mulheres, da feminina. E uma sociedade patriarcal terá, inevitavelmente, a atuação de uma energia masculina intensificada. Segundo o pensador, é necessário haver integração dessas energias, no âmbito coletivo e individual. Aquele que não exerce a busca deste equilíbrio de energias, será doente ou desequilibrado. Assim, por um lado, a energia masculina está relacionada ao externo, à obtenção de resultado, à reação, à conquista, ao embate, à agilidade, à exploração, à execução, baseando-se na máxima “os fins justificam os meios”. No outro polo, a energia feminina está mais ligada à paciência, ao acolhimento, à aceitação do outro, ao afeto, à preservação. É a força criativa, receptiva e reflexiva responsável por gerar e inspirar. Enquanto uma energia lida com a competição e obrigação, a outra aborda a cooperação e a comunicação. Bom, tendo em vista que a Engenharia atual é fruto de uma sociedade patriarcal e que 80% dos profissionais atuantes no Brasil são do sexo masculino, eu diria que a nossa Engenharia foi tomada por um masculino exacerbado e disfuncional, estando em desequilíbrio também neste ponto.


A energia feminina é a chave para alcançarmos uma melhor relação com o outro e com o meio ambiente. É esta habilidade que está sendo requerida nos dilemas que estamos enfrentando atualmente. Não é de se surpreender que os países do mundo que melhor controlaram os impactos da recente pandemia do coronavírus foram aqueles governados por lideranças femininas3. Na Islândia, Taiwan, Alemanha, Finlândia, Dinamarca e Nova Zelândia, os diferenciais foram as habilidades de comunicação e comprometimento com a verdade, cuidado com o outro, atenção e prioridade aos vulneráveis, emprego de tendências tecnológicas e tomadas de decisões difíceis que prejudicavam as economias nacionais, mas asseguravam a saúde pública. Paralelamente, fico imaginando como esta capacidade de diálogo poderia ajudar no entendimento e na promoção do conceito da confluência4 de Nêgo Bispo, transformando divergências em diversidades entre povos e integrando a ancestral biointeração4 das comunidades quilombolas e indígenas ao uso das riquezas naturais nas práticas da engenharia nas cidades. Mais ainda, penso em como esta visão acolhedora e preservadora do feminino pode enxergar e usufruir dos resíduos gerados em cada etapa de produção no setor industrial. Com uma visão mais holística e o foco no processo, e não mais no fim, fica fácil entender como a energia feminina está bem alinhada ao conceito de economia circular tão difundido para o alcance do desenvolvimento sustentável. Uma economia onde todas as etapas são reconhecidas, aceitas e trabalhadas, onde a conservação se sobressai à exploração, onde se partilha e não se desperdiça, onde se enxerga valor no que é depreciado. Atuando com a energia feminina, ninguém fica para trás, e todo resíduo vira recurso.



Se os países precisam de mais lideranças femininas, a Engenharia segue o mesmo caminho e o Saneamento também. Enfrentando problemas de baixa cobertura de sistemas de água e esgotamento sanitário em regiões pobres, marginalizadas e isoladas, o Saneamento do Brasil é considerado um dos principais problemas de desenvolvimento econômico, social e ambiental do país. Enquanto pessoas adoecem e padecem com a falta de higiene, água de qualidade e destinação correta de resíduos, nossos rios e matas são devorados pela exploração desenfreada e poluição indiscriminada. Sem contar nos impactos da baixa produtividade e poucas oportunidades de emprego em regiões mais afastadas dos grandes centros devido à falta de infraestrutura de saneamento. A ênfase se dá nos péssimos indicadores de coleta e tratamento de esgoto e resíduos sólidos. Não é de se surpreender, novamente, que as situações mais graves envolvam comunidades mais vulneráveis e gerenciamento de resíduos: os “excluídos” da sociedade (patriarcal). Assim, vejo que as qualidades atribuídas à energia feminina seriam o elemento faltante na Engenharia que melhor lidaria com tais dilemas do saneamento brasileiro. A fim de ilustrar, gostaria de trazer um exemplo de um amigo do mestrado que estava desenvolvendo banheiros públicos em uma comunidade isolada e pobre na África: Após alguns dias de reuniões e planejamento, a construção dos banheiros foi realizada em um local um pouco afastado das moradias por motivos religiosos. Pois bem, a obra foi entregue e a equipe se despediu da comunidade. Meses depois, meu amigo visitou o local e descobriu que os banheiros não estavam sendo utilizados. Motivo: o percurso que o usuário teria que realizar entre a sua casa e o banheiro público cruzava com o percurso de elefantes selvagens da região. Moral da história: dinheiro de fundos humanitários foram desperdiçados (mais comum do que você pode imaginar), população vulnerável continuou sem banheiro e sem esgotamento sanitário seguro, engenheiros seguem querendo entregar resultado, sem promover escuta ativa e diálogo eficaz com as comunidades. Quem iria imaginar que elefantes estariam ali? Eu não iria. Mas os moradores, com certeza, tinham essa informação e estavam dispostos a fornecê-la. Bastava ouvir, dialogar, compreender, se relacionar. Atributos estes presentes em uma equipe de engenharia equilibrada, com energias femininas otimizadas.


Por fim, deixando este texto balanceado, trarei um aspecto mais técnico e argumentarei sobre como os sistemas descentralizados de água e esgoto podem ser essenciais para a universalização do saneamento e como as mulheres engenheiras têm uma grande compatibilidade com a execução deste tipo de projeto. Banheiros públicos para moradias sem sanitários, eco fossas, banheiros secos, captação e reaproveitamento de água de chuva, unidades de compostagem, reúso de resíduos... Muitos são os exemplos de técnicas e sistemas não-centralizados ou “não-convencionais” disponíveis na Engenharia para captar e tratar água, coletar, tratar e destinar esgotos e resíduos sólidos. Por outro lado, por mais que existam tecnologias avançadas, aprendi no meu mestrado de Engenharia Sanitária que a estratégia mais apropriada é aquela adequada ao contexto e ao usuário. Os sistemas descentralizados têm, portanto, um maior potencial de serem implementados em consoante com as adversidades locais de regiões marginalizadas, carentes de saneamento. Seja uma favela, um distrito isolado no sertão ou uma comunidade indígena de difícil acesso, estes sistemas conseguem atendê-los, pois aplicam flexibilidade, adaptação e biomimética – mimetizando os processos naturais do ciclo da água, utilizando elementos naturais do local e retornando matéria-prima para o meio ambiente circundante. Dessa forma, a abordagem destes projetos também está compatível com a nova narrativa dos tratamentos de água e esgoto, a qual promove soluções cada vez mais baseadas na natureza, com resultados mais resilientes e menos impactantes para o meio ambiente. Foi também me especializando no maior instituto internacional de pós-graduação em água, em contato com colegas e estudos de caso de diferentes continentes, que entendi como os sistemas descentralizados são muito especiais. Eles exigem a participação ativa da comunidade em diferentes partes do projeto. Eles desenvolvem o senso de pertencimento e responsabilidade dos usuários pelos processos e pelos recursos naturais envolvidos. Eles são a engenharia das comunidades auto-sustentáveis. Tais tecnologias, contudo, não são bem sucedidas sem o diálogo com a comunidade, sem a cooperação dos usuários para uma boa operação e manutenção, sem a compreensão das particularidades da região, da cultura e dos habitantes, sem a busca pelo equilíbrio entre a oferta natural do recurso e a demanda dos moradores, sem a criatividade e flexibilidade na promoção de soluções cada vez mais alinhadas aos modelos naturais já existentes. Assim, com mais mulheres no saneamento, empregando as suas qualidades de colaboração e promovendo saneamento em regiões antes “rejeitadas”, nós teremos menos casos parecidos com o exemplo do meu amigo africano e mais casos como as comunidades quilombolas auto-sustentáveis4 descritas pelo Nêgo Bispo.


Em síntese, tentando fazer diferente para finalmente provermos o direito à água e ao saneamento a todos os brasileiros, a Engenharia precisa rebalancear a sua força de trabalho. É necessário resgatar a energia do feminino, pois as habilidades atreladas às profissionais mulheres são justamente aquelas incipientes na implementação da economia circular dos nossos processos e no atendimento e enfoque nas comunidades mais vulneráveis. A parcela feminina não pode ser mais vista como menor, pois é no desequilíbrio do feminino e masculino que lidamos com desentendimentos, incompreensão, desarmonia, desperdício e exploração. Equilibrar esta balança, usufruindo das duas potências disponíveis que temos, interna e coletivamente, resultará em soluções mais criativas, eficazes e sustentáveis, vindas de diferentes perspectivas. Assim, a execução bem sucedida de sistemas descentralizados, por exemplo, é uma das soluções que exigirá esta paridade, atenderá regiões com déficit em saneamento e dará enfoque em estratégias baseadas na natureza. Se são as mulheres as responsáveis por levarem água na cabeça dos açudes às suas casas, as mulheres engenheiras levarão, então, água e saneamento aonde a Engenharia tradicional ainda não tem levado. Similarmente, assim como o Ailton Krenak acredita que as soluções para a nossa sobrevivência estão nas estratégias do passado e o futuro da humanidade é ancestral5, eu diria que o futuro do saneamento é feminino.


Referências

  1. https://www.confea.org.br/200-mil-mulheres-compoem-o-sistema-confeacrea-e-mutua

  2. https://www.youtube.com/watch?v=5fcICVtMat0&ab_channel=CasadoSaber

  3. https://forbes.com.br/forbes-mulher/2020/04/mulheres-na-lideranca-sao-o-diferencial-dos-paises-com-as-melhores-respostas-ao-coronavirus/

  4. SANTOS, Antônio Bispo. Colonização, Quilombo: modos e significados. Brasília: INCTI; UnB; INCT; CNPq; MCTI, 2015.

  5. KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. Companhia das Letras, 2022.




Camila Figueredo Miranda é mestranda no programa de Águas Urbanas e Saneamento - Engenharia Sanitária no IHE Delft. Engenheira Civil pela Universidade Federal de Sergipe com período de graduação sanduíche na University of Idaho e na San Diego State University. Bolsista de excelência, nos Estados Unidos e na Europa, tem desenvolvido pesquisas nas áreas de aproveitamento energético de biogás, tratamento de lodo sanitário, sistemas descentralizados de esgotamento sanitário e construções sustentáveis. Experiência em saneamento, gestão energética, gestão de projetos e de equipes e auditoria de obras e projetos públicos.

Contato: cfigueredomiranda@gmail.com | www.linkedin.com/in/camila-figueredo-miranda


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