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Sumário da água

Blog da REBOB

Participação feminina em instalação de sistemas de captação e armazenamento de água de chuva.

Caminhos para o exercicio do direito humano à água.


Denise Soares


A falta de exercício do direito humano à água aprofunda as brechas de gênero, porém, ambos os problemas ainda não são abordados de forma articulada, pelo que as mulheres continuam enfrentando desigualdades derivadas dos arranjos sociais, que lhes atribuem responsabilidades pelo abastecimento de água, aumentando sua carga de trabalho. Essa contribuição insere-se nessa discussão e propõe a instalação de sistemas domiciliares de captação e armazenamento de água da chuva como estratégia de acesso à água e redução da carga de trabalho das mulheres.


Não exercer o direito humano à água não só aumenta a carga de trabalho das mulheres, mas também afeta o gozo de outros direitos. De fato, há estudos que documentam a evasão escolar feminina por falta de disponibilidade de água, uma vez que a divisão sexual do trabalho atribui à mulher a responsabilidade de todas as atividades domésticas, inclusive as relacionadas ao abastecimento de água aos domicílios, fazendo com que as mulheres sejam mais afetadas pela falta de água (Ferreira de Souza Passos et al., 2022). Assim, diante da escassez de líquido no espaço doméstico, da má qualidade e acessibilidade da água, as mulheres devem dedicar horas ao transporte de água e aos cuidados da saúde da família, comprometendo seu tempo disponível para a alfabetização ou atividades de lazer. O fato de outros direitos das mulheres serem violados pela falta de acesso à água tem como consequência o aumento das desigualdades entre homens e mulheres, bem como entre mulheres rurais e urbanas, levando à feminização e territorialização da pobreza, forçando as mulheres rurais a viver processos de maior desigualdade.


A partir da realização de diagnóstico sobre o exercício do direito humano à água e da constatação da violação desse direito na localidade rural de El Mirador, pertecente ao municipio de Zautla, no estado de Puebla, México, se está promovendo a instalação de sistemas de captação e armazenamento de água da chuva domiciliar, a fim de permitir maior autonomia hídrica às famílias e contribuir para a redução da carga de trabalho feminina.


Uma vez que as famílias concordaram com a necessidade dos sistemas, foi realizada uma análise detalhada da situação de cada moradia a fim de determinar as demandas específicas de acesso à água e as áreas disponíveis para a instalação da tecnologia que facilita o exercício do direito humano à água. Elaborou-se uma ficha técnica junto com cada familia, com informações sobre a capacidade da cisterna para o armazenamwento de água, com base no número de habitantes da residência, bem como a área de teto necessária para captar o volume de água requerido para a família.


Formaram-se equipes para a instalação dos sistemas, numa lógica de ajuda entre famílias ou casas vizinhas. Inicialmente se estabeleceu que cada grupo de trabalho fosse composto por homens e mulheres, levando em consideração a experiência anterior de trabalho em alvenaria. No entanto, houve um rearranjo devido ao fato de que muitos homens foram contratados para a colheita da cana-de-açúcar no estado vizinho e as mulheres assumiram a liderança no processo.


As mulheres foram treinadas no processo de construção e manutenção dos sistemas e, coletivamente, o primeiro foi instalado, buscando estimular a participação ativa das mulheres em todas as atividades. Segundo Nogueira et al. (2020), articular conscientização, capacitação, construção de tecnologia, bem como capacitação para manejo e uso corretos, contribui para o empoderamento das mulheres e isso está acontecendo na localidade rural de El Mirador.


Entre a instalação de um e outro sistema, as mulheres foram adquirindo novas competências, quebrando estereótipos de gênero (responsáveis ​​pela sub-representação das mulheres em atividades relacionadas à construção de infraestrutura) e ressignificando-se como pessoas capazes de se aventurar em atividades diferentes daquelas socialmente aceitas. Quando suas cisternas estiverem cheias, haverá outra mudança no cotidiano das mulheres, pois sua carga de trabalho relacionada ao abastecimento de água será reduzida, elas poderão dedicar mais tempo a outras atividades e a si mesmas. Da mesma forma, todas as mulheres assumem que a água da cisterna não será apenas para consumo humano, mas também para a agricultura de quintal, o que terá um impacto positivo no direito à alimentação.


A definição do direito humano à água determina seus usos pessoais e domésticos. No entanto, a realidade rural é diferente da urbana; já que naquela, a reprodução da unidade doméstica está fortemente ligada às atividades produtivas do quintal, que abastecem o domicílio com alimentos. Assim, enquanto nas áreas urbanas a família não precisa de água para alimentar os animais ou irrigar as plantas, pois os alimentos são comprados nos supermercados, nas áreas rurais a água é gerida de forma que todos os membros vivos da família tenham acesso a ela. De acordo com Butterworth (2012), o uso de água doméstica em atividades produtivas de quintal em áreas rurais de países pobres está próximo de 50% da oferta total. Entre os usos produtivos dos quintais, ele destaca a irrigação de pequenas hortas com água doméstica ou com água residual da própria casa e aquela consumida pelo gado, que, segundo esse autor, bebe muito mais do que seus próprios donos.


É preciso “territorializar” a definição do direito humano à água; a restrição de seus usos ao uso pessoal e doméstico no meio rural coloca em risco o direito humano à alimentação, uma vez que esse recurso não está disponível para irrigação ou para animais de quintal. Na prática, é difícil evitar que as famílias dediquem a água do sistema doméstico para usos produtivos, por esta razão os sistemas devem ser projetados levando em consideração o número total de usos que as famílias dão à água nas áreas rurais. Se consideramos as especificidades territoriais, para o pleno exercício do direito humano à água nas localidades rurais, seria necessário agregar aos usos pessoais e domésticos, a produção de quintal, atividade quase exclusiva de mulheres, dado que os direitos humanos à água e à alimentação nas áreas rurais são indissociáveis (Soares, 2022).


Embora os processos participativos não sejam uma panacéia que resolva tudo, eles constituem uma alternativa viável de compromisso e ação social, na medida em que afetam a visibilidade de grupos tradicionalmente excluídos dos processos decisórios, para a redução das desigualdades e vulnerabilidades. Assim foi concebida e desenvolvida esta contribuição, envolvendo as mulheres desde o processo de diagnóstico sobre o exercício do direito à água, o planejamento de alternativas de acesso ao líquido, até a instalação de sistemas de captação e armazenamento de águas pluviais, fortalecendo suas capacidades e auto-estima, por se conhecerem com habilidades para superar estereótipos de gênero e realizar atividades de alvenaria.



Fotografia: Denise Soares
Fotografia: Denise Soares
Fotografia: Omar Fonseca
Fotografia: Omar Fonseca
Fotografia: Omar Fonseca
Fotografia: Omar Fonseca

Agradecimento: esta contribuição foi possível graças ao financiamento do Consejo Nacional de Ciencia y Tecnologia (Conacyt) ao projeto: “Modelo interdisciplinar para exercer o direito humano à água e ao saneamento em áreas rurais marginalizadas do México”.


Bibliografia


Butterworth, J. (2012). Un vínculo oculto entre el agua y la seguridad alimentaria: el uso múltiple del suministro de agua doméstica. En A. Guijarro, A. Jiménez, M. T. Febrer, M. Hernando, & I. González (Coords.), Agua y alimentación, por derecho (pp. 26-40). Madrid: ongawa/aecid.

Ferreira de Souza Passos, G., Campos Borja, P., Pereira Santos, M.E., Alves Rossi, R. (2022). Género e direito a água. Uma reflexão a partir de programa um milhão de cisternas. En Matos, F. e Carrieri, A. Agua e Género. Perspectivas e experiências (vol.1). Ituiutaba: Editora Barlavento. Pp. 202-247.

Nogueira, D., Milhorance, C. y Mendes, P. (2020). IdeAs. Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos: divergências políticas e bricolagem institucional na promoção do acesso à água no Semiárido brasileiro. https://journals.openedition.org/ideas/7219.

Soares, D. (2022). Territorio, género y derechos. El agua y el saneamiento en debate. Perfiles Latinoamericanos FLACSO, vol. 30, núm. 59.




Denise Soares é brasileira e mexicana, doutora em antropologia pela Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), pesquisadora do Instituto Mexicano de Tecnología del Agua (IMTA), área de participacao social e ativista ambiental na Rede de Genero e Meio Ambiente. Entre suas linhas de pesquisa se encontram: enfoque de género na gestión hídrica, direitos humanos a agua e ao saneamento, vulnerabilidade e riscos de desastres frente a mudancas climáticas.

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