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Sumário da água

Blog da REBOB

Transformação da água no lugar de uma vida



Ivonete Terezinha Tremea Plein


Falar sobre a questão da água é uma experiência que modifica e transforma nossas vidas, dependendo da nossa realidade e do conhecimento que a vida e as experiências, individuais e coletivas, vão acrescentando em nossas vivências.


Quando eu era criança, lembro de ser fascinada pela água que corria continuamente pela mangueira que vinha de uma nascente superficial – a mesma que usávamos para irrigar a plantação de tomates e tomar água na roça – passava pela cozinha, onde podíamos usar à vontade, seguia para o tanque, onde tomávamos banho, lavávamos roupas, irrigávamos a horta. De lá seguia para alimentar os animais e depois desaguava no córrego da propriedade, que alimentava o monjolo e seguia seu curso nas lindas cachoeiras, que viviam esplêndidas, na mata nativa preservada que servia de jardim para a alegria dos passeios de domingo.


Na adolescência, as mudanças foram marcantes: um poço especifico para uso humano, com bomba de retirada de água e caixa (de amianto) para armazenamento. Água encanada para chegar na casa, com chuveiro no banheiro e descarga sanitária, um esgoto encanado com fossa séptica, localizada longe das nascentes e alimentos.


A fonte superficial, seguia alimentando outras áreas da propriedade: animais, horta, criação de peixes e passou a ser fonte importante de partilha de água com os vizinhos, que começaram a ser afetados pelas secas temporárias. A água já não ficava correndo o tempo todo, chegaram as torneiras – uma borracha para fechar a saída da mangueira – havia um cuidado para preservar a nascente economizar água. Meus pais, sábios pela natureza de sua raiz rural, nos ensinaram trabalhar no (re)florestamento dos contornos da principal nascente da propriedade. Lembro claramente da delimitação de áreas que não seriam mais roçadas e das centenas de mudas de árvores nativas que produzimos e plantamos por pelo menos uma década.


A vida adulta me levou à universidade, com formação na Geografia, a questão da água se fazia presente inteiramente na minha formação e na minha prática pedagógica. Só então, eu começava perceber, em seu sentido amplo, o que eu havia presenciado em nossa casa/propriedade relativo à água. Foi, nessa fase, final da década de 1990, que a questão da água foi discutida mais amplamente na sociedade civil, nas escolas, nas reuniões de sindicato, cooperativas, etc. Mas também, que a pressão do capital rural se mostrou ameaçador e aniquilador.


Naquela realidade, eu, enquanto jovem mulher professora de Geografia, começando a tomar consciência do meu papel na sociedade, usufruía a liberdade do processo de ensino-aprendizagem, nas aulas para crianças do Ensino Fundamental, para trabalhar com eles a questão da água. Aulas cheias de informações provenientes da minha formação, da Agenda 21 (resultado importante da RIO 92) e, o encanto das músicas em sala de aula, para cativar as crianças e tornar o tema, uma lembrança marcante em suas vidas, com o toque suave e alegre de “Água pros bisnetos” (Flavio Dalzin – Grupo Terceira Dimensão), “Planeta água” (Guilherme Arantes) e “Planeta azul” (Chitãozinho e Xororó), encerravam-se as aulas semanais de Geografia e firmava um tema na vida daquelas crianças, em sua maioria, filhas de pequenos agricultores.


Na chegada do ano 2000, meu trabalho final na universidade tratou da mata ciliar. Na primeira reunião com meu querido orientador, professor Gilberto Martins, ele disse que eu precisaria fazer muitas pesquisas para abordar tantos aspectos e treinar para escrever de forma menos poética e mais acadêmica – ele tinha razão – mas não era simples para mim, separar aquele espaço de vivência em partes e olhar para ele com menos emoção, porque eu o sentia como um todo, suas particularidades, belezas, perdas e transformações.


Era um tempo de transformação em mim e no lugar onde eu vivia. As mudanças da realidade tornaram-se marcantes. Chegava na nossa região o uso de aviões agrícolas para aplicar agrotóxicos; os parreirais já não conseguiam produzir; as abelhas desapareciam das colmeias; nossa horta precisava de proteção para ficar viva; os grandes produtores comprando as pequenas propriedades e as pequenas reservas sendo destruídas para o aumento do plantio de soja; a drenagem de áreas de nascentes na vizinhança; a retirada de madeira na mata nativa, entre tantas outras questões.


Nosso lugar foi transformado e sentíamos as consequências em nossa propriedade e na forma de produzir. Nossa água já não era mais segura, não havia sua falta, mas uma preocupação constante com sua contaminação.


O tempo mostrou que a grande produção venceu o pequeno modo de viver, produzir e preservar naquele lugar. A soja, ganhou a luta, com seu valor econômico absoluto. As máquinas foram mais fortes que as árvores. As pessoas fizeram as escolhas pelo lucro e não pelo futuro.


A bela “nascente forte e permanente” deixou de existir na sua configuração natural, e, o vizinho novo, criou uma fonte de renda atualizada, transformando parte da nascente em uma lagoa de lazer, sem mata ciliar, mas com gramado e quiosques o que esgotou toda a área daquela nascente em nossa propriedade. Com pouco tempo, não tínhamos mais vizinhos, porque as pequenas propriedades estavam sendo unificadas em uma só, a cidade chegava perto demais e os problemas foram comprometendo a vida naquele espaço, restando como melhor alternativa, construir um novo lugar para cada um de nós. Nossa pequena propriedade diversificada se transformou em uma ampla plantação de soja. E aquele córrego, que abrigava o monjolo e as cachoeiras, ficou poluído e perdeu o encanto dos passeios de domingo da família. Passou a ser considerada área desperdiçada – mantida no menor espaço, apenas pela força da lei.


Essa é uma descrição pessoal, mas nem tanto, porque ela representa uma realidade coletiva. Transformações de uma região específica, o Oeste de Santa Catarina, no entanto, ela parece descrever milhares de realidades similares pelo Brasil: nossas doces vivências de infância, relacionadas à água, transformando-se no decorrer de nossas vidas. São as transformações da virada de milênio.


Atualmente, no doutorado em Geografia, minha tese se dedica à qualidade da água, neste novo cenário de mundo e em outra realidade rural.


As mudanças no modo de vida se tornaram aceleradas nas últimas décadas, e, suas consequências se fazem absolutamente presentes. Em nenhum momento da história, os problemas ambientais foram tão marcantes e claramente perceptíveis. E o que acontece agora? De que forma podemos lidar com tais questões?


Não há uma receita pronta, porém, há caminhos a seguir para reestabelecer a relação falha entre desenvolvimento e preservação, entre consumo e cuidado. O bem estar individual e coletivo, ligados à segurança da qualidade e disponibilidade de água é uma demanda urgente na sociedade. Em todas as esferas, não há mais tempo de experimentar a degradação. É hora de impedir o colapso.


Novas perspectivas se apresentam e muitos modos de vida provam que outro mundo é possível, que uma outra sociedade precisa ser construída, onde a vida seja prioridade. Enquanto as águas correm e somem a vida se transforma e a luta de quem perdeu é para que outros a tenham.


As imagens mostram a configuração do lugar descrito. Na primeira, a propriedade na década de 1990. A segunda, atualmente, onde os destaques em amarelo representam o local onde ficava a casa, o poço, os animais e a mata ciliar – retirada da nascente. Atualmente as lavouras são de soja, no espaço onde havia hortaliças e frutíferas dos mais diversos tipos, criação de abelhas, erva mate, linhaça, trigo, feijão, cana-de-açúcar, banana, milho, arroz, etc.


Num lugar, onde moravam pessoas e constituíam uma comunidade com laços de fraternidade, cultivando um modo de vida aprazível, hoje tem produção intensiva de um único grão e áreas de lazer para quem quer se isolar do convívio urbano. Se o olhar sobre as águas do lugar, for sem conhecer a história, a realidade percebida, certamente, será outra.




Ivonete Terezinha Tremea Plein

Técnica em Assuntos Educacionais – UTFPR. Graduada em Geografia (Licenciatura Plena) pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (2000). Especialista em Informática em Educação pela Universidade Federal de Lavras (2004). Mestre em Educação (Universidad de León - ESP.). Mestre em Geografia (UNIOESTE - 2013). Doutoranda em Geografia – UNIOESTE.

E-mail: ittp20@gmail.com


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